Talentos

A revolução das cores

A revolução das cores

Em um tempo recente, num país muito próximo, as cores conviviam em plena harmonia e aceitação. As cores, sempre tão amigas e calorosas, costumavam divertir-se juntas nas festas de Carnaval, de São João, do Boi Bumbá e tantas outras.
Entre elas não importava se as nuances eram originárias da natureza ou do engenho humano, se estavam ou não dentro das especificações controladas pela Pantone. Conviviam muito bem nas caixas de lápis de cor e nas prateleiras das frutarias, bem como nos carrinhos das manicures. As cores sabiam que o mérito vinha da sensação e sentimento que cada pigmento, que cada matiz, provocava ao atingir o olhar humano.
Nessa época de relevantes singelezas, o beija-flor acarinhava cada flor que surgia em seu caminho, indiferente se azul ou vermelha ou amarela. A pequena criatura agitava suas asas em busca do sopro vital com que cada planta lhe brindava e, em agradecimento, com o bico carregado de doçura, beijava as flores pelo caminho.
As mãos bordadeiras fiavam e teciam cenas do cotidiano de ontem ou de amanhã, comigo ou com você, não importava. O entretecer tons de amarelo para mostrar a alegria do sol, os azuis do mar que sem preconceito se entrançavam aos verdes, os vermelhos dos lábios da paixão. O tramar fios coloridos e com eles representar a vida é que valia as horas de dolorida intimidade entre dedos e agulha.
Caçarolas e caldeirões, sempre dando guarita às cores habituais dos alimentos, inadmitiam qualquer preconceito. Pimentão verde vermelho amarelo. Feijão preto, vermelho, verde, branco, roxinho e mesmo rosinha. Até terrinas vanguardistas com beterrabas amarelas, couve-flor roxa, cenoura vermelha, conviviam, entre gostos e cores, harmoniosamente.
E o arco-íris, em sua inocente colorisse, alegrava os céus sobre igrejas e escolas, parques e casas de família, quartéis e tendas de umbanda. Todos sabiam, sem prejulgamento, que o importante era colorir as vidas sob o rico arco luminoso do fenômeno meteorológico.
Um dia, sorrateiramente, a harmonia foi perturbada.
O verde, não todo verde, mas aquele desbotado pela insignificância, que com inveja do sabor do morango rúbeo, furor pela paixão dos lábios abrasados, e rancor da força escarlate da rosa, colericamente esbravejou.
- O vermelho é o mal.
De início nenhuma outra cor levou a sério as palavras vazias daquele desusado verde, mas ele não se calou. Bradou discursos ilógicos, urrou impropérios, vomitou mentiras e cuspiu ódio.
- Banindo o vermelho do nosso mundo das cores sobrará mais espaço para que flores bege sejam admiradas, que frutas amarronzadas pela madures sejam ainda saboreadas.
- As unhas da moça se vestirão com o recato do esmalte “misturinha” ...
Suas palavras e olhar e gestos eram movidos à fúria.
- Sem o vermelho o mundo das cores será mais castiço... legítimo.
As outras cores, antes serenas pela concórdia, começaram a ficar aturdidas, e o verde, aproveitando-se do desequilíbrio causado, continuou a expelir sua cólera.
- Devemos valorizar apenas as cores do bem.
E algumas cores começaram a escutar o falatório verdolengo.
- Eu, “O” verde, significo esperança e crescimento...
E uma das cores gritou...
- E a moeda americana... a verdinha... o dólar!
Ignorando a interrupção, continuou a preleção.
- O marrom, cor injustamente ignorada pelos jovens, significa seriedade e austeridade que tanto precisamos.
O bege, aproveitando-se da importância atribuída ao marrom, gaguejou esbaforidamente.
- Eu sosou cacacalmo.
Então o cinza se pronunciou: - Alguns dizem que sou elegante, outros que sofro de ausência de emoção, mas na verdade significo neutralidade.
O verde voltou rapidamente ao ataque com a voz tropeçando de repulsa: - O vermelho diz... quer dizer... devassidão... perdição... sexo!
Os tons mais indolentes passaram a corroborar com a manifestação contra o rubro. Com discursos tão ocos quanto o original, não deixaram o vermelho se pronunciar.
Nem o azul e o rosa conseguiram argumentar contra as ideias retrógradas do grupo incolor e assim foi instituída a lei do silêncio, lei que calava apenas algumas cores.
Na sequência as florestas foram queimadas, com incentivo do verde e seus amigos, para as terras ganharem um tom mais apropriado aos novos tempos.
Para tornar as plantações mais produtivas e os pastos mais saborosos para o gado, o verde mandou pulverizar uma bruma de nome impronunciável no país que descolorava.
Os animais que não foram queimados ou intoxicados, foram caçados, pois o verde bolor achava que suas carcaças embelezavam as fotografias que seriam postadas em estéreis mídias digitais.
Por conta da destruição instituída, o céu deixou de ser azul e foi escurecendo... crepusculando.
A voz nascida da malquerença se pôs a fechar ambientes dedicados a colorir a vida com a desculpa de que eram criações vermelhas.
O mundo que antes era colorido agora estava “nude”.
Percebendo que as cores queriam a harmonia e segurança de antes do jorro de cupidez e recalque, a matiz vermelha não se intimidou.
Ao ritmo do coração pulsante pelo sangue do povo, as cores primárias secundárias terciárias..., elas, sem qualquer limitação imposta, uniram-se para lutar pelo retorno à VIDA.

Compartilhe essa obra

Share Share Share Share Share
Inspiração

Ao assistir nas diversas mídias as "brigas" entre cores. O vermelho, o verde, o amarelo e outras, foram usadas como disfarce... maquiagem para mascarar mensagens e discursos como nunca antes tinha visto.

Sobre a obra

O texto foi criado em formato de fábula, ou seja, um ser inanimado (as cores) ganham vida e tornam-se personagens,

Sobre o autor

Desde minha aposentadoria, meus dias são dedicados às artes e ao apoio à ONGs de apoio aos animais carentes.
Dentro do mundo artístico gosto de tecer histórias e brincar com as palavras, ler as metáforas da natureza e transformá-las em versos ... em quadros ... em fotografias.

Autor(a): LILIAN DEISE DE ANDRADE GUINSKI (Lilian Guinski)

APCEF/PR