Talentos

O PRESENTE DE QUINZE ANOS

Maria nasceu na 5ª Travessa da Colônia Pedro Teixeira, no interior do estado do Pará, no auge dos anos 60.

Para sustentar a família, seus pais trabalhavam na lavoura diuturnamente, alternando entre a plantação de feijão, arroz, mandioca, e a criação de galinhas e patos. Cada um dos oito irmãos era responsável por alguma tarefa no roçado. Maria tinha a função da executar a coivara no terreno, que é a técnica agrícola de se atear fogo nas roçadas para desembaraçar o solo e adubá-lo com as cinzas, facilitando a nova plantação. O sol a pino e a quentura das queimadas levavam Maria à exaustão, dia após dia.

Sua mãe, uma mulher muito forte e batalhadora, dividia-se entre a lavoura e o preparo do almoço para alimentar toda a família, bem como os trabalhadores rurais que ajudavam nas plantações. A comida era feita em grandes tachos cozinhando em fogões de lenha. Além disso, tinha que cuidar e dar de mamar para os dois irmãos mais novos.

O único horário que sobrava para Maria brincar com seus irmãos era após o almoço, durante a sesta de seus pais. Porém, as brincadeiras deveriam ser em silêncio total, pois se algum ruído os acordasse, seu pai já descia da rede com o cinto nas mãos e a peia comia frouxa em todos os irmãos, independente de quem fez o barulho.

Apesar das peias quase diárias, Maria e seus irmãos aproveitavam qualquer oportunidade para se divertir. Brincavam de peteca, disputavam quem subia nos galhos mais altos das árvores, improvisavam um campinho no chão de barro para jogar bola, pulavam corda, brincavam de pira-esconde e tomavam banho na cacimba. Eram momentos de tanta alegria que eles até esqueciam por alguns instantes a vida dura que levavam.

À noite, eles disputavam os poucos cômodos da casinha de enchimento, para descansar do dia difícil. Em cada canto da casa, ficava um emaranhado de redes, onde os irmãos mais traquinos aproveitavam para malinar os demais irmãos com cócegas, cutucadas e algumas vezes jogando água dentro das redes. Quando o pai via isso, era peia novamente. Iam dormir com o couro quente.

A hora de estudar não era menos difícil. A escola ficava a 10 km de distância da colônia. Então os irmãos eram obrigados a ir andando ou alternando entre si a única bicicleta que possuíam, quando não tinha algum defeito. Aos que iam de bicicleta, era mais uma forma de diversão. Aproveitavam as partes da estrada de barro onde haviam declives e abriam os braços e pernas para sentir adrenalina e o vento forte no rosto, à toda velocidade. Alguns ainda fechavam os olhos para mostrar que eram mais corajosos. Se caíssem, a peia já era certa na volta para casa.

O pai era muito religioso e, no domingo, quando os irmãos pensavam que iam brincar um pouco mais, o pai levava toda a família para a igreja, que ficava à mesma distância da escola. A diferença é que teriam que caminhar em total silêncio e sem direito a brincadeiras. Isso sem contar que, na volta para casa, havia uma missa que seu pai acompanhava através do seu radinho de pilha, onde todos eram obrigados a rezar junto com ele e conhecer as preces de cor e salteado. Com todas aquelas imposições, Maria e seus irmãos consideravam a religião uma verdadeira tortura.

Apesar da vida difícil, Maria sempre teve um sonho. Certa vez, quando foi na cidade ajudar seu pai a fazer compras, viu uma reportagem na televisão do mercado que mostrava uma festa de quinze anos ocorrida na capital. Ela ficou encantada com o vestido da debutante, todo branco e bordado de flores. Ficou ainda mais fascinada com o momento da valsa à meia noite, onde a menina-moça bailava pelo salão com o pai e os demais cavalheiros da festa. Naquele momento, Maria sentiu um desejo imenso de ter algo parecido nos seus quinze anos, que já estava se aproximando.

E assim, Maria foi levando a vida naquele lugarejo, sem muita perspectiva de melhorar, até o dia em que seu pai chegou com uma nova ideia:
- Venham cá todos vocês! Estou com um desejo enorme de enviar alguém para o internato a fim de estudar na capital e aprender mais de religião. Na verdade, meu verdadeiro sonho é que todas as minhas filhas sejam freiras e meus meninos continuem me ajudando no roçado. Tem alguma voluntária? Senão eu mesmo escolho.

Com essas palavras, Maria sentiu o mundo desabar. Ela já não aguentava mais falar em reza e aquelas obrigações religiosas que o pai impunha, e agora ele vem com mais essa novidade. Contudo, Maria parou para refletir melhor e pensou: “até que não seria tão ruim assim, pois eu teria um estudo bem melhor do que eu tenho aqui nesse fim de mundo e, rezar por rezar, eu já tenho que fazer isso sempre”. Então Maria foi a primeira a gritar:
- Eu quero ir!

O pai ficou boquiaberto. Maria era a mais irrequieta e teimosa das irmãs. Aquela que liderava as brincadeiras, criava as regras e a única que arriscava enfrentá-lo. Sem saber que a intenção de Maria, na verdade, era fugir de suas rédeas, ele tratou de providenciar a sua ida ao internato. Obviamente, ela não poderia demonstrar que estava contente com a ideia, pois, como ele conhecia bem o seu jeito astuto, poderia voltar atrás a qualquer momento.

E assim, aos 14 anos de idade, Maria mudou-se para o internato da capital com a expectativa de mudar de vida. Só que ela não tinha ideia que enfrentaria o rigor das irmãs religiosas, que estavam acostumadas a lidar com aquelas adolescentes travessas.

Nos primeiros dias, Maria verificou que haviam poucas meninas sob regime de internato. A maioria era apenas estudantes que moravam em suas residências próprias e seus pais custeavam seus estudos. Portanto, cabia às meninas do internato o cumprimento de diversos trabalhos internos impostos pelas irmãs, como forma de compensar seus estudos e moradia. Suas tarefas consistiam na limpeza de todas as salas de aula após cada turno, varrição de todo o colégio, ajudar na cozinha e no refeitório e, por fim, passar os hábitos brancos das freiras utilizando ferro de carvão. Se as irmãs encontrassem alguma sujeira de carvão nas roupas, além de fazer as meninas lavarem novamente, ainda ficariam de castigo no internato, sem poder ir para suas casas no final de semana.

Para acompanhar se o trabalho das meninas estava bem feito, as freiras tinham o cuidado de passar o dedo no chão das salas de aulas, para verificar se havia algum pó de giz que não fora limpo corretamente. Caso encontrasse, as internas teriam que passar o pano molhado em toda a sala novamente, enquanto ela ficava em pé na porta aguardando para nova inspeção. No refeitório, as irmãs cheiravam cada prato e talheres para verificar se havia algum cheiro de comida. Ao fiscalizar os banheiros, as irmãs diziam:
- Esse chão deve ficar tão limpo ao ponto de eu poder deitar com meu hábito, e não sujar nem um pouquinho.

Maria começou a perceber que a vida não seria tão fácil como imaginou. Suas agruras haviam apenas mudado de endereço.

Nas horas vagas, Maria conversava sobre esses dissabores com Lídia, sua amiga de internato mais próxima:
- Essas irmãs são muito rigorosas e exploradoras. Elas aproveitam que somos necessitadas e nos fazem de empregadas. Lembro que ao chegar aqui com meu pai, foi explicado que iríamos apenas ajudar em alguma tarefa, assim como elas. Mas o que vejo é que elas não fazem nada. Ficam apenas batendo papo o dia inteiro enquanto a gente trabalha.

- É verdade, mas fazer o quê? Creio que vamos ter que passar por tudo isso se quisermos realizar nossos sonhos. Falando nisso, qual o seu maior sonho na vida? – perguntou Lídia com um ar de curiosidade.

- Hum, sonho a longo prazo eu penso apenas em terminar meus estudos e conseguir um emprego para me sustentar. Agora, a curto prazo, eu tenho um desejo tremendo de fazer uma festa nos meus quinze anos. Só não vejo como – disse Maria com um olhar triste.

Lídia tinha grande consideração por Maria. Elas sempre ficavam juntas para os trabalhos em equipe e para estudar antes das provas. Passavam cola. Encobriam suas falhas nas tarefas do internato para enganar as freiras. Eram cúmplices em tudo.

Ao ouvir Maria falar de seu sonho com tanta tristeza, Lídia pensou imediatamente em planejar uma festa surpresa para ela. Lembrou que o dia do seu aniversário seria justamente no próximo final de semana. Então planejou falar com os pais e irmãos de Maria para organizarem uma festinha no terreiro atrás da casa. Poderiam convidar toda a vizinhança e emprestar a eletrola do seu Mundico para tocar os LPs de forró, e à meia-noite, Maria dançaria a valsa com os convidados, igual como ela viu na TV do mercado.

E assim foi feito. Lídia combinou tudo com Afonso, o irmão que Maria mais gostava, e este tratou de convencer os pais, dizendo que Maria era a aluna mais estudiosa e a única que conhecia todas as rezas. O pai, todo orgulhoso, saiu convidando toda a vizinhança da redondeza, avisando que ia fazer uma grande festa para sua filha que estudava na capital. Mandou matar 10 patos e falou para sua esposa preparar o famoso pato no tucupi que era o prato mais desejado naquela redondeza. Comprou maços de papel colorido no mercado e mandou todos os filhos prepararem bandeirinhas para enfeitar o terreiro. Foi pessoalmente falar com a costureira mais famosa da cidade para preparar um vestido branco, todo rodado e cheio de babados, para Maria usar no dia. Seria uma festa que há muito tempo não se via naquela colônia. Os vizinhos trataram de comprar roupas novas e ainda fizeram gastos com presente para Maria. Afinal, ai de quem chegasse numa festa de interior sem levar presente. Ia ser mal falado por muitos anos.

Ao saber de todos os preparativos, Lídia ficou muito feliz. Estava prestes a realizar o maior sonho de sua amiga. Não via a hora de ver seu rosto de felicidade quando fosse dançar a valsa, trajando seu lindo vestido.

Lídia era muito namoradeira. Aproveitava cada final de semana para namorar com um rapaz diferente. Porém ela gostava mesmo era dos mais gordinhos. Achava sensual aquela barriguinha sobrando sobre as calças e sempre escolhia os obesos.

Na sexta-feira que antecedia a festa de Maria, Lídia tinha um encontro marcado com Luiz, seu novo paquera. Ele possuía uma barriga bem avantajada, do jeito que ela gostava.
Lídia sempre contava com o apoio de Maria para suas fugas do internato, para ir aos encontros. Elas aproveitavam o momento que a freira da portaria saía para ir ao banheiro e fugia pela porta da frente do colégio. Na volta de Lídia, já à noite, Maria ficava na janela de seu quarto no andar superior do colégio e avisava quando a irmã ia ao banheiro para que Lídia entrasse, aproveitando que a irmã sempre deixava a porta entreaberta. Era um plano perfeito.

Foram tantas vezes que o plano funcionou com tamanha perfeição que elas resolveram arriscar um pouco mais, justamente naquela sexta, e tiveram a ideia de tramar a entrada de Luiz no internato ao invés da Lídia sair ao seu encontro. Elas ficariam atentas ao momento da saída da irmã para ir ao banheiro e sinalizariam para Luiz entrar. Só que, naquele final de tarde, estava ventando muito, então a freira, antes de sair para o banheiro, resolveu deixar uma pequena mesa escorando a porta da entrada, a qual era do tipo sanfonada, metade madeira, metade vidro. A irmã tinha receio que o vento fechasse a porta, impedindo o acesso das pessoas ao colégio enquanto ela estivesse fora. Só que Luiz era um rapaz muito desajeitado e nervoso. Por várias vezes ele tentou declinar da ideia de entrar, mas as duas insistiam que tudo estava muito bem planejado e que nada poderia dar errado. Mesmo assim, Luiz ficou suando frio e tremendo enquanto aguardava o sinal das meninas para entrar.

Ao ver o sinal, Luiz foi correndo até a porta e ficou empurrando para tentar abrir, pois não sabia que havia a mesa por detrás. Assim que conseguiu abrir um pouco, Luiz resolveu se esgueirar por aquele pequeno espaço, esquecendo-se do tamanho de sua barriga. Quando estava quase conseguindo, ouviu os passos da freira que estava voltando do banheiro. Ele ficou tão desesperado que resolveu empurrar a porta com a barriga com toda a sua força. Não deu outra, a mesa apertou contra a parte de vidro da porta, despedaçando-o totalmente. Com o susto, Luiz caiu por cima dos vidros e da mesa, bem na frente da freira.

Injuriada, a irmã se virou para as duas e gritou:
- Seus pais vão pagar todos esses prejuízos! E a partir de hoje estão proibidas de sair do internato! Esse vai ser o seu presente de quinze anos, Maria.

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Inspiração

Este conto é baseado em fatos reais. É a história de uma amiga que passou por momentos difíceis em sua vida, mas que os superou com muita determinação, e hoje é uma pessoa muito feliz.

Sobre a obra

Utilizei uma narrativa, buscando as informações e os sentimentos envolvidos diretamente com a pessoa que me inspirou. Seu nome e locais foram alterados para preservar a identificação.

Sobre o autor

Sou um amante da arte em todas as formas que ela se propõe. Participo do Talentos FENAE desde 2013 e não pretendo parar tão cedo, pois este concurso anual tem me inspirado cada vez mais a aprofundar meus conhecimentos na arte que abraço, e assim poder divulga-lá para todo o Brasil.

Autor(a): FRANCISCO ALENILSON GIRARD DA SILVA (Alê)

APCEF/PA