Por onde anda Banzé

Por onde anda Banzé

Alguns acontecimentos na infância só serão entendidos muito tempo após. É o que ocorreu comigo. Levei 50 anos para compreender o destino de meu cachorro chamado Banzé. E isso me deixou pensativo... introspectivo. Me senti melancólico.
Estou em frente a um canil para adotar um cachorrinho e me veio essa lembrança. Passo a contar uma história que envolve a mudança de cidade e um cachorro de estimação.

Era janeiro de 1971.
Estava com 10 anos e nossa família preparava-se para mudar de cidade. Deixaríamos o pacato município de Santiago do Boqueirão para oportunizar aos filhos alçarem voos mais altos nos estudos. Nos mudávamos para Santa Maria, cidade ferroviária, cidade cultura e que tinha uma universidade federal.
Lá os filhos teriam maiores oportunidade de cursar uma graduação. Assim, pensava meu pai e raciocinou certo: todos os filhos concluíram ensino superior.
Dia 19 de janeiro de 1971, um dia de sol forte num verão escaldante, nossa família rumou para o Coração do Rio Grande. Nos despedimos de Dona Mimosa – querida vizinha de longa data –, que derramou uma lágrima na nossa partida.
O caminhão estava carregado e a viagem seria longa. Mas eu não esqueceria o cachorro. Ao indagar onde Banzé viajaria, recebi como resposta que seria amarrado na carroceria do caminhão.
– Por que o Banzé não vai na cabine comigo?
Não obtive resposta. O cachorro iria na carroceria. Claro que fui confirmar a informação e vi que, realmente, o Banzé estava amarrado com uma corda. Achei meio frágil a cordinha, mas acreditei que estava certo e o cachorro faria uma boa viagem.
Voltei para a cabine onde viajaria com o pai, um irmão e o motorista. Um gurizote iria espremido entre dois adultos. Em alguns minutos, partimos. Para mim, uma grande aventura.
E, assim, rumamos para Santa Maria. O grande desafio da viagem seria a descida do Ernesto Alves que, na época, parecia algo como a Serra do Rio do Rastro. Mas era tudo falatório. Passamos pela famosa tranqueira e nem vimos. Quando chegamos em Jaguari alguém falou que já havíamos passado pela serra do Ernesto Alves. E ninguém percebeu algum perigo na viagem.
Então eu tive a brilhante ideia.
– Vamos ver como está o Banzé?
Meu pai e o motorista se entreolharam. Eu insisti. Queria ver o cachorro.
Ao saber que o Banzé não estava na carroceria foi motivo de tristeza. Lembro que não chorei pela falta que sentiria do cãozinho de estimação. Parceiro das brincadeiras na rua General Canabarro em Santiago. Segundo o motorista, o cachorro havia pulado do caminhão no Ernesto Alves. Para adultos sérios e insensíveis não era motivo para um mínimo sentimento de falta. Mas para um garoto de 10 anos, era uma imensa perda. É um trauma que trago da infância: se alguém fala em Ernesto Alves eu lembro do Banzé. Nunca tive interesse em conhecer àquela localidade e poucas vezes voltei a Santiago.
Postei-me calado pelo restante da viagem. Cheguei triste na nova morada. Banzé não estaria mais nas minhas traquinagens infantis.
Na minha primeira semana em Santa Maria, eu resolvi escrever “100 versos para Banzé”. Procurei algumas rimas para meus versos infantis e consegui algo como pé, chulé, chalé, café e Pelé – o craque da seleção tricampeã no México – e, claro, fé. Pois acreditava que um dia reencontraria o Banzé. Não sei que fim deu os meus “100 versos para Banzé” – nem lembro se conclui a empreitada –, mas como tudo nessa jornada... o tempo vai aplacando as dores e a vida segue. Os bons tempos ficam distantes e a saudade vai serenando a memória. E quando nos damos por conta, passaram-se cinco décadas.

E, hoje, estou diante de um cãozinho a ser adotado e a veterinária diz que o nome do cachorro é Banzé.
– Banzé chegou ontem de Santiago. Um casal, em mudança para o litoral, resolveu deixar para adoção.
– O Banzé veio de Santiago? – perguntei, como quem precisava de uma confirmação. E não precisava de resposta.
Estava nítida em minha mente o ocorrido há cinquenta anos na mudança de minha família para Santa Maria.
O Banzé da minha infância jamais embarcou no caminhão. Ele ficou em Santiago – certamente, aos cuidados da vizinha Mimosa – e me encontrou 50 anos depois.

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Inspiração

A relação de uma criança com seu cachorro de estimação. E a separação.

Sobre a obra

Ao chegar num canil para adoção de um cachorrinho, o personagem se depara com o mesmo cãozinho que havia se separado há cinquenta anos.

Sobre o autor

Participante de vários festivais de músicas e poesias. Dentre eles o 16º Bivaque da Poesia Gaúcha com o Poema “Herdeiros”; Talentos Fenae 2020 com a música “O violão entre a cruz e a espada” e da 27ª Tertúlia Nativista de Santa Maria com a música “Retalhos”.
Autor de vários livros, dentre eles "O código Locatelli" e "Contos de Prata".

Autor(a): ATHOS RONALDO MIRALHA DA CUNHA (Athos Ronaldo Miralha da Cunha)

APCEF/RS

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