O pequeno Jurandir

O pequeno Jurandir

Eu tenho uma vida atribulada. Muita correria nos meus afazeres diários, pois faço atendimentos no hospital, na unidade básica de saúde e no meu consultório. Um cardiologista não tem tempo para reflexões ou pausa para um cafezinho. Sobra pouco tempo para divagações porque o coração pede urgência.
Eu tenho a pretensão de ser um bom médico, mas por vezes nosso empenho não consegue salvar as vidas que estão doentes diante de nós e quando isso acontece eu sempre lembro de uma passagem marcante da minha infância. Quando a gente não sabe o que fazer... quando a nossa ajuda é insuficiente.
Nesses momentos eu fico pensativo... eu era um gurizote.

Na estação ferroviária de Santiago do Boqueirão, um casal, João e Maria, aguardava ansiosamente a chegada do trem com destino a Santa Maria da Boca do Monte. Os dois filhos, Pedro e Clara, estavam empolgados com a viagem e corriam pela gare, entusiasmados com a aventura que estava prestes a começar. Iriam visitar os avós na pequena Restinga Seca.
Enquanto aguardavam, João e Maria observaram um senhor idoso que caminhava lentamente pela plataforma, segurando a mão do menino Jurandir, aparentemente, seu neto. O homem parecia cansado, mas tinha um sorriso gentil nos lábios, que iluminava seu rosto enrugado. O velho ferroviário, recém aposentado, e seu neto embarcariam para uma viagem de férias na Boca do Monte.
O trem finalmente chegou de São Borja, e o neto, o avô e a família embarcou no vagão de Primeira Classe. O casal e as crianças sentaram-se animadas, olhando pela janela enquanto o trem partia de Santiago. Estavam em duas poltronas colocadas frente e frente. Santiago ficava para trás sob uma densa neblina. Durante a viagem, João e Maria admiravam a paisagem enquanto Pedro e Clara se entretinham com brincadeiras e jogos. O clima era de felicidade e empolgação.
O homem e seu neto estavam sentados em um assento próximo ao casal. O quepe que usava identificava o passado ferroviário. E João notou que o idoso parecia preocupado. Ele mantinha os olhos fixos na janela, como se estivesse esperando por algo ou alguém. E, seguidamente, enxugava o rosto com um lenço. Parecia ansioso. O neto ao contrario estava eufórico. Feliz pela viagem, possivelmente a primeira viagem de Jurandir. Mas logo após Jaguari o passeio se transformou em um trauma. Um estrondo de uma queda ecoou pelo vagão, seguido de gritos apavorados de uma criança. Todos os olhares se voltaram para o homem idoso e seu neto Jurandir. O idoso estava caído no chão com os olhos vidrados e o menino em choque, segurando a mão do avô sem entender o que estava acontecendo.
A confusão tomou conta do trem, e os passageiros entraram em pânico. João e Maria protegeram seus filhos da cena. João auscultou o pescoço do velho e percebeu que não havia pulsação. Com os dedos levemente fechou as pálpebras do velho. Em sua frente havia um morto, possivelmente tinha sido acometido por infarto. O pequeno Jurandir estava em total desespero.
A viagem que era para ser de felicidade e diversão transformou-se em uma jornada trágica pelo falecimento de uma pessoa.
João e Maria tentaram consolar Jurandir que estava em estado de choque após testemunhar a morte do avô. O pequeno mal conseguia articular palavras, mas em seu olhar, havia um misto de tristeza e terror que partia o coração de todos que o viam.
Enquanto o trem prosseguia para Santa Maria, a atmosfera dentro do vagão era pesada e carregada de apreensão. Em uma das poltronas, encoberto por um lençol, viajava um falecido. E aos cuidados de João e Maria o pequeno Jurandir. Pedro e Clara estavam atencioso com o Jurandir eram todos praticamente da mesma idade. Havia solidariedade entre as crianças.
A jornada chegou ao fim quando o trem finalmente cruzou pela ponte metálica e lentamente parou na estação Santa Maria. O pequeno Jurandir ficou sob os cuidados de autoridades, e ninguém sabia se ele poderia superar o trauma que havia vivenciado.
João e Maria nunca mais esqueceram aquela viagem e as memórias daquele dia os assombravam por vezes nos seus sonhos. Por algum tempo Pedro e Clara perguntavam pelo Jurandir e a resposta era sempre a mesma. Ele havia voltado para Santiago e vivia com os pais. Mas na realidade João e Maria nunca mais tiveram notícias de Jurandir.

E hoje eu estou aqui com a mesma perplexidade de alguns anos atrás. Diante da iminente morte de um homem idoso infartado. Idoso como meu avô há muitos anos. Não há o que fazer, apenas refletir sobre a vida e a morte.
E fico pensando por onde anda aquele casal com um casal de filhos. Eles foram importantes na minha vida. Nunca mais soube deles.
Nesse meio tempo a enfermeira me desperta da minha viagem ao passado.
– Doutor Jurandir. Seu Pedro do 509 foi a óbito. Não resistiu...
Esse Pedro que faleceu hoje não é o mesmo Pedro da minha infância, nós tínhamos a mesma idade e esse senhor é bem mais velho, mas o Pedro e a Clara volta e meia permeiam minha vida. Como uma doce lembrança. São as sombras que pairam sobre os trilhos da minha memória.

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Inspiração

A inspiração veio das lembranças das viagens de trem na minha infância.

Sobre a obra

É um conto narrado em primeira pessoa por um médico que trata das lembranças de uma tragédia numa viagem de trem.

Sobre o autor

Nascido em Santiago-RS, Athos Ronaldo Miralha da Cunha é graduado em Engenharia Civil e aposentado da Caixa.
Autor de oito livros dentre crônicas, contos e um romance: O código Locatelli.
Detentor da cadeira número 5 da Academia de Letras da Região Central – ALERC-RS.
Detentor da cadeira número 32 da Academia Santa-Mariense de Letras – ASL.

Autor(a): ATHOS RONALDO MIRALHA DA CUNHA (Athos Ronaldo Miralha da Cunha)

APCEF/RS