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O grande dia!!!
Sinésio acordou eufórico. Coisa pouco comum, principalmente em se tratando de uma segunda-feira. Mas esse seria seu grande dia. Ao menos era o que acreditava.
Na repartição atendeu a todos com uma cortesia além do habitual. Sinésio é boa praça, atende bem a todos e ajuda o quanto pode aqueles o procuram na repartição. O salário de barnabé não é lá essas coisas, o quê não o impede ter uma vida digna em um distante bairro de subúrbio. Os que o procuraram nesse dia foram contemplados com um Sinésio ainda mais cortês e atencioso, o que não deixa de incomodar alguns de seus colegas que acham todos esses salamaleques atitude ‘pouco profissional’.
O chefe, Dr. Eustáquio, veio ao seu encontro.
- Tudo pronto pra hoje, Sinésio?
- Claro, Doutor!!!
- Amanhã não precisará nem vir trabalhar, disse Dr. Eustáquio fazendo graça.
- Imagina, Doutor. A gente não pode ficar besta só por ter um pouco mais de dinheiro no bolso.
Dr. Eustáquio possui alguns cavalos puros-sangues. Nada muito especial, só por diversão. Gosta de Sinésio e sabe que também possui um gosto pelas corridas. De vez em quando lhe dava algumas dicas. Dessa vez era mais que uma dica. Era uma barbada, uma verdadeira bomba, que renderia um bom dinheiro. A confiança era grande. Pelo entusiasmo de Dr. Eustáquio, a coisa deveria ser boa mesmo.
Sinésio saiu da repartição por volta das 18h30min em direção ao hipódromo, situado em um bairro elegante e bem cuidado, bem diferente de onde morava. Depois de um trânsito daqueles, chegou por volta das 19h30 com dois páreos já corridos.
O ambiente do hipódromo é muito agradável. Bela paisagem, muito espaço livre e arborizado, ambiente chique e confortável, temperatura sempre amena, mesmo nos dias mais quentes do verão. Para além da paisagem, os frequentadores estão mais preocupados com os cavalos e as apostas, sem tempo para cuidar do alheio, o que contribui ainda mais para a agradabilidade do ambiente.
Sinésio é assíduo frequentador do hipódromo. Possui um grupo de amigos que sempre se encontram em lugar certo nas tribunas, bem próximo à pista. Cada um deles, assim como a maioria dos turfistas, se acha um grande conhecedor dos cavalos e das carreiras. Dizem ter intimidade com os jóqueis, treinadores, proprietários, além de amplos conhecimentos dos próprios cavalos, seus pedigrees...; ou seja, todas as mumunhas e artimanhas que envolvem cada páreo não lhes escapam. Mas, é claro, tudo isso é mais balela que outra coisa. De toda forma, levam a sério a ‘profissão’. Tão a sério que por vezes se envolvem em debates acalorados, mas que ficam só nisso mesmo. Sinésio fica mais na dele, se divertindo com as discussões.
O grupo se faz presente quase todos os dias de corrida. Chegam cedo e ficam boa parte de seu dia no Jockey. Porém, não apostam mais que cinco ou dez reais em cada páreo. Afinal, são um bando de duros que aguardam pacientemente o dia que acertarão a ‘bomba’ que mudará suas vidas; o seu grande dia.
É verdade que no turfe existem os ‘experts’. O turfe é tudo menos um jogo de sorte, ou de azar, como normalmente se diz. Cada páreo envolve uma série de fatores que precisam ser analisados com o máximo cuidado pelo apostador: qual o retrospecto de cada cavalo? Quem são jockey e treinador? O competidor sairá da baliza de dentro ou de fora da pista? O páreo será na pista de grama ou de areia? Tempo seco ou chuvoso... frio ou calor... e por aí vai. Existem pessoas que se dedicam a estudar todos esses fatores em profundidade, alguns chegando a acordar no hipódromo para conferir o desempenho dos animais nos treinos matutinos. Não é o caso, obviamente, dos amigos de Sinésio, que se guiam mais pelas fofocas e boatos. Outrossim, além das condições objetivas, digamos assim, existe o imponderável. Por exemplo, se o cavalo ficar parado no box de partida, se assustar com uma sombra ou um gato entrar na pista durante o páreo.
No turfe existem três tipos de apostadores. Os que ganham; grupo que reúne uns cinco por cento dos turfistas, se tanto. No segundo grupo, talvez uns vinte por cento do total, estão aqueles para os quais apostar é apenas uma diversão. Ganham, perdem, mas não têm ilusões sobre o jogo e mantém o bolso sob controle; para eles o turfe é pura diversão. Porém, a multidão se concentra entre aqueles que perdem, afinal alguém tem que bancar o jogo. Se o apostador não souber claramente a qual grupo pertence ele está enrascado. É o que acontece com a maioria dos que estão no terceiro grupo. Acreditam fielmente pertencerem ao primeiro grupo e que seu grande dia ainda não chegou. Bem, não é diferente do que acontece na maioria dos jogos.
Naquela noite, Sinésio, como era de se esperar, estava inquieto, aguardando ansioso pelo oitavo páreo. O oitavo páreo da programação era reservado para animais de quatro anos sem vitória. Aqui cabe uma explicação. Um cavalo normalmente começa sua campanha nas pistas ao final dos dois e início dos três anos de idade. Quando um animal chega aos quatro anos sem ganhar uma corrida sequer, das duas uma: ou teve algum problema ou é um animal de pouca categoria, um matungo, por assim dizer.
Esse era o caso de Corcovado. Nesta noite faria a sua vigésima terceira corrida e nas últimas cinco chegara descolocado. O Jockey Club oferece prêmios aos proprietários dos animais que chegam do primeiro ao quinto lugar. Ou seja, nas suas últimas cinco corridas Corcovado havia chegado do sexto lugar para trás. Em termos concretos, dava um prejuízo tremendo ao seu proprietário. Não pagava nem o que comia. Estranhamente Corcovado é um animal muito bonito. Possui uma bela cabeça, membros bem aprumados, ancas fortes e demonstra confiança no olhar. Também possui um excelente pedigree. Por tudo isso, causa admiração o fato de ter uma campanha tão ruim.
Porém, dessa vez o treinador estava bastante confiante. Corcovado mostrou estar em ótima forma física, no último furo, como se diz, e havia marcado bons tempos nos treinos. Como os adversários não eram lá essas coisas, entendia ele, que as chances do cavalo eram das melhores. E Dr. Eustáquio ansioso por algum prêmio que reduzisse o seu prejuízo. No passeio de apresentação ao público Corcovado mostrou que estava mesmo ‘na ponta dos cascos’. Mesmo assim, os apostadores permaneceram céticos. Seu prêmio seria de 350 por 10. Ou seja, se o leitor fizesse como Sinésio e apostasse mil reais, uma fortuna se comparada ao que ele normalmente jogava, vencendo o eleito, o prêmio seria de r$ 35.000,00.
Sinésio, seguindo as orientações de Dr. Eustáquio, jogou em um bookmaker, na verdade um bicheiro seu conhecido. Assim, sua aposta de valor mais elevado que o normal não diminuiria o prêmio ofertado pelo hipódromo. O prêmio é calculado de acordo com uma relação na qual o cavalo mais jogado paga valores menores e vice-versa. Como o valor jogado nos bookmakers não entra no cálculo do apurado no hipódromo, essa aposta não impacta o prêmio a ser pago ao apostador. Porém, como os bookmakers pagam ao apostador prêmio igual ao oficial do hipódromo, é mais lucrativo apostar neles quando o valor é alto. Os bookmakers obtêm bom lucro quando aceitam apostas de valor elevado e o cavalo apostado não vence. Por outro lado, o seu risco é grande.
Chegada a hora, dos alto-falantes emerge a voz potente do locutor oficial do Jockey Club:
“Largada para oitavo páreo do programa! Cortina de Fumaça, lá por dentro, vai se atrasando para último. Índio Ligeiro é o primeiro, Flecha do Buriti é o segundo. Flecha do Buriti força por fora e toma a ponta...”
Bem, o tal Flecha do Buriti assumiu a ponta. Fazendo jus ao nome, disparou na frente, abrindo uma boa vantagem para os demais. Depois dele, o também veloz Índio Ligeiro, igualmente fazendo jus ao nome. O jóquei J.J. Soares, piloto de Corcovado, manteve o seu pupilo um pouco mais atrás, ficando entre o sexto e o oitavo lugares. Voltemos a narração.
“Flecha do Buriti mantém a primeira quando eles passam pela metade da reta oposta, Índio Ligeiro segue em segundo, Boqueirão é o terceiro, Leão do Iguaçu é o quarto. Seguem os demais, com Cortina de Fumaça em último tentando melhorar. Quando eles entram pela grande curva.”
“Flecha do Buriti continua em primeiro, Boqueirão melhora para segundo com Índio Ligeiro agora um pouco encerrado por dentro, Leão do Iguaçu é o quarto, Fera do Neném por fora é o quinto e Corcovado é o sexto. Eles agora... contornam a curva de chegada e entram na reta final.”
Bem, quando fizeram a última curva a situação era a seguinte: Flecha do Buriti e Índio Ligeiro entraram na reta praticamente juntos, Boqueirão na cola dos líderes, Leão do Iguaçu e Corcovado seguiam muito próximos e Fera do Neném desgarrou na curva e ficou afastado. Voltemos ao locutor que agora, quando os competidores entram na reta, acelera a narração, gerando uma dramaticidade que agita o público as arquibancadas.
“Em frente às tribunas gerais Índio Ligeiro por fora vai dominando a situação, Leão do Iguaçu e Boqueirão brigam pela segunda, enquanto Corcovado ganha terreno por fora e Flecha do Buriti vai sobrando por dentro. Em frente às tribunas especiais Corcovado vem tentar a primeira. Corcovado domina a situação, livra cabeça, pescoço...”
Nas tribunas a gritaria era geral. Sinésio com o comprovante da aposta na mão dava saltos e já chorava de alegria.
Porém, eis que surge o imponderável.
O jóquei J.J. Soares, já certo da vitória ainda faltando cinquenta metros antes da chegada, fez posição de ganhador. Ou seja, ficou quase de pé nos estribos, diminuindo o ritmo de Corcovado. E o locutor continua.
“Cortina de Fumaça com grande ação por fora vem lutar pela primeira; Cortina de Fumaça domina, livra cabeça... cruzam a faixa final.”
Quando J.J. Soares se deu conta da atropelada de Cortina de Fumaça ainda tentou reagir, mas o pobre do Corcovado, já relaxado, não tinha pernas conter a maior ação do adversário.
“Primeiro Cortina de Fumaça; em segundo Corcovado em grande atuação. O terceiro está entre Leão do Iguaçu, Boqueirão e Guaicuru. É o resultado deste oitavo páreo do programa.”
Nas tribunas a gritaria continua. De um lado a alegria dos apostadores de Cortina de Fumaça que já tinham o páreo como perdido. E do outro a turma de Corcovado xingando o infeliz do J.J. Soares.
Sinésio procurou um lugar afastado dos demais, agarrando com força a aposta na mão. E, por fim, o alto-falante ecoou mais uma vez, agora com a ordem de “poooooodem pagar”, confirmando o resultado do páreo. Desolado, Sinésio ficou um tempo completamente paralisado, olhando para um ponto indefinido no horizonte. Tudo estava consumado.
O dia era do bicheiro!!!
Levantou-se e foi até o ponto de ônibus, aguardando aquele que o levaria ao centro da cidade. Era por volta das 21:30 e ainda teve que esperar uns vinte minutos, pois os intervalos entre os veículos já estavam maiores por conta do horário. No centro ainda esperou em torno de meia hora para pegar o ônibus para casa. Chegou em casa um pouco além das 23:00.
Letícia, a esposa de Sinésio, abre a porta.
- Oi homem, isso é hora de chegar? Amanhã tem que acordar cinco da manhã. Quer jantar?
- Não, bem!!! Comi alguma coisa no caminho. Vou dormir.
De barriga vazia, mas sem fome, Sinésio se deitou de lado com o rosto voltado para a parede, ainda com o recibo da aposta nas mãos. Custou a dormir, mas ficou quieto. Depois de um tempo acabou adormecendo.
Os trinta e cinco mil reais do prêmio não dariam para comprar uma casa, um carro novo.... Mas era o preço de um resgate. O resgate de um homem comum. Daqueles que apenas vivem e não são donos do próprio destino.
FIM
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Inspiração
Poucas pessoas conhecem as corridas de cavalo. É um evento único que envolve beleza e personalidade desse animal magnífico. Os páreos são emocionantes; o hipódromo um ambiente de personagens muito interessantes. É vista com desconfiança pela preocupação genuína com a saúde dos animais. A obra procura apresentar um pouco desse universo.
Sobre a obra
Trata de um dia na vida de um turfista que acredita que sua sorte chegou. A narrativa segue o dia desse personagem, sua esperança, angústia e frustação. Descreve o ambiente do hipódromo e seus personagens e acompanha o desenrolar de um páreo com suas nuances, imprevistos e as reações dos apostadores a cada momento.
Sobre o autor
Moro em Campo Grande, sou casado e sem filhos. Tenho dois enteados adoráveis. Amo ler, embora leia menos que amo. Também amo o livro e a forma como foi escrito, traduzido, publicado. Gosto de escrever; textos mais técnicos. Talentos FENAE é inspiração e desafio para algo maior. Sem ilusões, o resultado sempre vale a pena.
Autor(a): PAULO ROBERTO ALVES MOREIRA DA CONCEICAO (Paulo Conceição)
APCEF/MS
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