Coração de passarinho

Coração de Passarinho
A pilha de cadáveres já contava com seis calangos. Havia um sem rabo e outro com um rasgo de sangue na boca. O maior de todos teve a cabeça esmagada por uma pedrada certeira: um verdadeiro troféu de caça. Quando buscava por mais munição para a caçada, percebeu um chacoalhar de folhas secas e um bater de asas perto da goiabeira. A imaginação infantil, mais rápida que as pequenas pernas secas cheias de cicatrizes e hematomas do menino, sugeria desde uma luta feroz entre o predador e sua presa até disputas territoriais, entre os machos mais fogosos e robustos, pelas fêmeas em um bando de pássaros, tantas eram as contendas animais no quintal de casa.
Ainda levava a baladeira nas mãos, quando encontrou um passarinho caído do ninho. O voo rasante e curto como o de uma galinha, levara o filhote a uma aterrissagem desengonçada. Cachorro, companheiro inseparável de aventuras e molecagens, teria devorado o bicho, se o garoto não o tivesse encontrado primeiro. O cão pulava e arranhava as pernas do dono, tentando alcançar o filhote de sanhaço-azul, até que um joelho ossudo o tirou de combate. O amontoado de calangos foi abandonado e a baladeira guardada por dentro da bermuda; a novidade havia encantado o caçador.
Compartilhava com a mãe, desde pequenas alegrias cotidianas até extravagantes molecagens, passando por dezenas de machucados e infames acusações, que negava com um talento quase teatral. Que façanha! Agarrou o sanhaço-azul com cuidado. No início alvoroçado, o pássaro cedeu ao poder devastador do caçador de calangos, que se alegrava em sentir o pequeno coração do passarinho pulsando forte em suas mãos, quase sucumbindo ao terror. Com pouco tempo, a ave parecia entender que não adiantava tentar escapar de seu destino. O pequeno sanhaço apenas mexia a cabeça, olhando por olhar e dando leves e inofensivas bicadas no indicador de seu algoz, sem causar qualquer incômodo ou sentimento de piedade na mão que o enclausurava.
Entrou correndo em casa pela porta da cozinha que dava para o quintal, o que já indicava uma transgressão conhecida. Dona Agustina não admitia esse tipo de comportamento de seus filhos. As crianças podiam brincar à vontade, mas, dentro de casa, não era permitido correr, sujar ou fazer qualquer tipo de desordem.
Passou por Rosa e a viu chorando, mas nem ligou. Por que besteira a caçula mimada estaria chorando agora? Rebeca calada, com o olhar perdido no espaço, também era normal. Porém, Pedro trazia o cabelo assanhado e o rosto molhado e vermelho, como todas as vezes que levava uma boa surra dos meninos da vizinhança, mas estava limpo e sem machucados. As percepções sobre aquele ambiente de silêncio não foram suficientes para conter o espírito agitado do caçador, que, após dois passos lentos, voltou a correr.
Sem mais distrações, seguiu em frente e entrou no cômodo da mãe. Doente, ela permanecia no quarto o dia quase todo, saindo apenas para tomar sol bem cedo, antes mesmo do café da manhã. Em um canto à direita, havia um casal desconhecido próximo à penteadeira. Do outro lado, o doutor, que examinava a enferma com frequência, terminava de organizar seus instrumentos em uma valise de couro com grossas fivelas de metal. O padre, por quem o menino passou pela porta como um frango fugido do galinheiro, pediu silêncio, chiando com o indicador na frente da boca.
Não havia antibióticos específicos para a doença da mãe ainda; um tratamento eficaz só foi aplicado a partir de 1970, cinquenta anos depois. O pai de Hélio, fosse por negacionismo ou vergonha, escondeu os sintomas da tuberculose e acabou contaminando a esposa, que se viu tísica pouco tempo depois de perder o marido.
Então, dando-se conta da gravidade daquele cenário, o menino aproximou-se da cama da mãe. Ela trazia uma tristeza pálida. O casal afastou-se um pouco, para deixá-los à vontade. Nesse momento, o travesso da casa sentiu algo escorrendo por suas mãos e logo pelo braço. O passarinho havia descarregado seus excrementos, causando um expressivo e sonoro asco no seu algoz. Então, segurou o passarinho com uma das mãos, apertando com dois dedos o pescoço do sanhaço, do jeito que seu pai lhe ensinara certa vez, e limpou o malfeito do passarinho na barra da bermuda sem pudor. A mãe riu daquela trapalhada toda, mas, com um gesto imperativo, ordenou ao filho que se mantivesse a distância.
– Hélio, meu filho, – começou dona Agustina com a leveza de quem era senhora da situação – sabe esse passarinho que você tem aí em suas mãos? Você é como ele e precisa ser cuidado. Ele é frágil e ainda não tem condições de voar sozinho. Você tem que encontrar um lugar para ele ficar seguro – a voz fugiu-lhe e um forte acesso de tosse trouxe um sangue vivo que foi contido por um lenço já sujo. – A mamãe está doente e precisa descansar. Esforce-se para ser uma pessoa de bem e ajude seus irmãos. Você é o meu menino corajoso!
Com aquelas frases curtas e plenas de significado, dona Agustina transbordou o amor que sentia pelo filho arteiro. Sabia que o menino tinha firmeza de caráter e coragem para enfrentar qualquer desafio na vida.
As lembranças de uma infância feliz resumiram-se aos anos de convivência com a mãe em Fortaleza: lições escolares conferidas com rigor, histórias contadas na varanda, o doce de goiaba e as cocadas, o colo que curava os machucados e o lençol que, misteriosamente, protegia seu corpo do frio e das muriçocas todas as noites.
Para Hélio, a memória do tecido recaindo sobre cada centímetro do seu corpinho de criança após a brisa suave da sacudida certeira do lençol ao ar, transformou-se em um refúgio espiritual; o melhor analgésico para as dores existenciais das noites onde o futuro tornava-se inseguro ou o corpo sofria as mazelas da condição humana.
O padre Friedrich, que estava na entrada do cômodo, cruzou o caminho de Hélio novamente. O menino saiu calado e sem brilho. O sacerdote aproximou-se de Agustina para ministrar a extrema-unção, pois esse era o desejo da enferma. Uma confissão sussurrada, pausada pela tosse, mas sem qualquer outra interferência, trouxe-lhe a paz definitiva. As frases foram se misturando e, por fim, os lábios apenas se moviam para dar significado ao que desejava exprimir. Com um assentimento de cabeça do padre, ela entendeu que suas últimas preces haviam sido escutadas.
Os santos óleos foram aplicados nas mãos frias e pálidas e na fronte. Os olhos se fecharam, ainda tremeram e depois relaxaram. A fórmula em latim foi completamente lida e o silêncio absoluto e incorruptível da casa permitiu que cada palavra pronunciada pelo sacerdote fosse escutada por quem estava na sala, dado o fervor com que foi ministrado o sacramento.
Hélio, que já tinha vivido uma experiência parecida com o seu pai, percebeu que aquele era o fim, uma despedida. Ficou tão abalado que soltou o filhote de sanhaço não se sabe onde, para nunca mais vê-lo. Cachorro deve ter dado cabo dele certamente.
Os irmãos não viram mais a mãe, nem viva nem morta. O sepultamento ocorreu após um rápido e reservado velório, ao qual acorreram poucos familiares e amigos. Sequer houve tempo para avisar aqueles que viviam em sítios mais afastados. Padre Friedrich organizou tudo.
No dia seguinte, quatro malas estavam próximas à porta de entrada da casa. Uma mão carinhosa repousou sobre a cabeça de Hélio, tentando arrumar-lhe os cabelos enquanto uma voz muito agradável e carinhosa explicava o que estava acontecendo.
A orfandade que se abatia sobre o caçador de calangos o conduziria à casa de pessoas estranhas em uma terra que não conhecia. Hélio não poderia levar sua baladeira. Seu amigo Cachorro também ficaria para trás, a cargo de uma empregada da casa, que prometeu que cuidaria do cão. Os poucos pertences estavam na mala. Com a morte de sua mãe, foram sepultados os momentos mais felizes e divertidos de sua infância.

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Inspiração

A epidemia de tuberculose no início do século XX

Sobre a obra

Conto que narra o drama de um garoto cheio de alegria que perde a mãe para a tuberculose. O conto é baseado em uma história real.

Sobre o autor

Contista, poeta e romancista. Gosto de escrever sobre a realidade humana e despertar no leitor empatia.

Autor(a): JEREMIAS REIS COMARU (Jeremias)

APCEF/CE

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