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O retrato de Catarina

O retrato de Catarina

Passei horas lendo Allan Poe no meu quarto, alcançando, sem perceber, a meia-noite; profunda e mística hora limite, reveladora e enigmática ao mesmo tempo. A escuridão da noite agora pertencia à madrugada, que agitava minha mente quando a atravessava insone. Dormindo, não era diferente, abria-se um canal sobrenatural que se manifestava em pesadelos sobre a ruína das almas e o destino de pessoas próximas. Eram profecias que eu tentava esquecer sem sucesso.
O dom das revelações privadas eu nunca, absolutamente nunca, contei a alguém. Não suportava essa responsabilidade, pois, fatalmente, o que me era revelado acabava se concretizando de uma forma ou de outra mais cedo ou mais tarde.
A caixa do remédio para a ansiedade ainda andava por ali. Eu nunca tinha ousado desobedecer à orientação de não beber e de fazer uso da droga, mas, naquela noite, a distração causou tal imprudência. Acredito que tenham sido três ou quatro doses de uísque. Já nem lembro mais. Foi na madrugada que experimentei uma confusão alucinante, graças a essa combinação nefasta.
Em casa, havia um quadro de minha avó Catarina ainda jovem, uma pintura anônima, pois não era assinada e não tinha data ou informações na parte de trás. A obra de arte foi motivo de inúmeras discussões na família. Acreditava-se na existência de um ex-amor, alguém por quem minha avó tivesse se apaixonado na juventude e de quem, supostamente, recordava ao admirar a obra. Meu avô Romário não conseguiu arrancar qualquer informação diferente daquela que minha avó repetia: um admirador, cujo nome ela não revelava, convenceu-a de que eternizaria sua juventude em um retrato. Ele cumpriu a promessa e não se ouviu mais falar dele. Era o que ela repetia como um mantra; era a verdade que conhecíamos.
Como a pintura era de muito bom gosto e de grande qualidade artística, permaneceu até pouco tempo no centro da sala de visitas de modo que a víamos ao entrar em casa. Já recentemente, Catarina guardou a recordação da juventude no escuro cômodo que ela chamava de quarto de acumulação. Não que ela fosse apegada a tudo, mas gostava de guardar suas antiguidades mais preciosas nesse lugar. Percebi que, desde então, ela passou a olhar pelo buraco da fechadura antes de entrar no dito quarto.
Dentre meus pesadelos, havia um que me atormentava por sua recorrência, deixando-me em estado depressivo. Tratava-se de um personagem sombrio que nunca abriu a boca para dizer nada, mas sua expressão de angústia era a de alguém sufocado pelo cárcere, sem consolo e consumido pelo arrependimento. Percebia-se nele uma expressão curiosa, como se alguém o espiasse. Eu me sentia o carcereiro e o encarcerado ao mesmo tempo. Parecia que ele dependia de mim para se libertar.
Eu estava no terceiro piso e meu estado era deplorável. Essas memórias me levaram ao cômodo das coisas de minha avó, mas, diante da porta, estanquei. Lembrei-me do que considerava uma mania senil de minha avó e, mesmo me sentindo um perfeito idiota, inclinei-me para frente para espiar pela fechadura. Que insensatez! Eu não deveria ter visto nada, afinal tudo se encontrava na escuridão. Para meu terror, a imagem do homem encarcerado surgiu de forma muito clara, olhando para mim com o mesmo sentimento aterrador. Assustei-me e recuei. Já era tarde demais. Voltei a olhar, para me certificar da minha loucura. Não havia nada, mas a luz estava acessa realmente. Fiquei calmo, mas ainda inseguro.
Lentamente, girei a maçaneta e abri a porta. Nada fazia sentido; nem poderia. Nada de extraordinário havia no aposento ou qualquer ruído que denunciasse a presença de alguém. Só as coisas guardadas e bem-organizadas. O retrato da vovó Catarina estava logo ali na frente, transpirando juventude e olhando para mim. De fato, era sua juventude eternizada, uma obra de um grande pintor apaixonado.
Aproximei-me do objeto ainda sob a influência da visão do encarcerado. Aquela bela pintura, quando estava na entrada da casa, encantava a todos, mas o olhar daquela imagem agora me causava inquietação. Resolvi devolvê-la ao lugar de origem, a sala. Agarrei a moldura dourada e desloquei um pouco o objeto para segurá-lo com maior firmeza, esticando os dedos para a parte de trás, pressionando melhor na lateral.
A figura que apareceu logo atrás foi a do meu avô Romário. Era tão atual e, ao mesmo tempo, fazia igualmente parte do passado. Era como se fosse seu último retrato e senti um aperto perturbador no peito. A imagem retratava o estilo e organização do meu avô: na mesa apenas o livro, a caneta e um bloco de anotações, o corpo ereto, o cabelo sempre arrumado e a barba feita. A expressão dele, sentado na grande poltrona da biblioteca era séria e preocupada; parecia que olhava para algo atrás de mim. O mais inusitado é que o quadro estava assinado: Catarina. Minha avó mencionou que havia abandonado a arte por imposição do meu avô. Por que vovô Romário estaria eternizado ali? A pergunta ficou pairando no ar junto à fina poeira que se formou com o movimento dos objetos.
Firmemente, segurei o quadro, erguendo-o na altura da minha visão, o que me fez mirar nos olhos do retrato de Catarina diretamente. Saí dali e comecei a descer a escada. Uma rápida náusea quase me derrubou. Parei e fechei os olhos. A visão angustiante do encarcerado surgiu na minha frente. Quando recobrei o equilíbrio, desapareceu. Quanta insanidade! Era como se o meu frequente pesadelo agora houvesse se transformado numa espécie de alucinação.
Tratei de encerrar o que havia começado. Coloquei o retrato da jovem Catarina no lugar original, ajustando-o em seguida. Sentei-me numa poltrona próxima e encostei a cabeça no respaldo macio, para admirar o retrato daquela linda mulher que foi minha avó.
A observação do quadro agora me remetia a outro tempo e a outro lugar. Não era bem uma aula de artes, embora o ambiente com vários cavaletes e paletas espalhadas por todos os cantos sugerisse isso. Mas ali havia um professor e uma aluna; profunda admiração e interesse de um lado, devoção e recato do outro.
— Desta forma, você será eterna — dizia o pintor enquanto dava o que pareciam ser as últimas pinceladas. — Veja a beleza que está por trás de cada detalhe. Por acaso, essa não é você? Isso é arte viva, minha querida.
Essas palavras mudaram a expressão da moça. Ela foi ao encontro do pintor, que se preparava para assinar a tela e finalizar sua obra. Porém, parecia que ela perdia as forças, que a vida lhe escapava a cada passo. Ao alcançar o artista, arrancou o pincel fino de sua mão, como se arrancasse a arma do fuzilador.
— Eu não quero ser imortal, Valentim — pronunciou cada palavra com força e pausadamente, tomando-lhe o pincel das mãos do pintor e tombando logo em seguida.
Como assim? Sempre soube que havia recebido aquele nome por influência de minha avó, mas escutá-lo naquele momento foi sinistro. Senti-me decisivo naquele embate. Mas por quê?
O pincel foi jogado longe e sumiu. O pintor transformou-se em uma criatura horrenda, formada de tinta negra que, pelo fluxo de duas espirais, diluiu-se e invadiu as pupilas dos olhos do retrato. A jovem pôs-se de pé e, só então, percebi que se tratava da minha avó Catarina, a mesma do quadro da sala. Um grito rasgou minha garganta.
Fixei o olhar na imagem do quadro. Eu estava na sala de casa. Que coisa absurda! O que antes encantava a todos, agora me parecia de inspiração perniciosa, maléfica. A implicância do meu avô fazia sentido agora.
Tive uma súbita vontade de olhar para trás, percebendo o perfume da colônia de minha avó. Antes que o fizesse, meu pescoço sentiu um leve toque de uma mão ossuda, de pele muito fina. Um vento frio e cortante invadiu a porta de entrada que, além de aberta, balançava com a corrente de ar.
— Assina, Valentim — suplicou minha avó, segurando um pincel muito fino e embebido por tinta preta. — Acaba com isso de uma vez por todas — sentenciou com um olhar tão implacável que não me dava escolha.
Atordoado, segurei o instrumento e me encaminhei ao retrato, para obedecer àquela imperiosa instrução. Imaginava-me condenado ao mesmo fim do pintor, totalmente absorvido pelo quadro.
Arrastado por uma força irresistível, eu assinei a pintura: “Valentim. 2019”. Mas não estávamos em 2018 ainda? Olhei para minha avó. Já não era a idosa com a qual eu convivia, mas sim a jovem que posara para o artista. Jatos grossos de um negro líquido jorraram das pupilas da imagem do quadro e o pintor surgiu, deixando de ser a horrenda criatura formada de tinta.
Era o encarcerado dos meus pesadelos! Agora eu estava certo disso. Sem dizer palavra, mas agora respirando ares de liberdade, o pintor apenas movimentou a cabeça em diagonal, inclinando-se para a frente com elegância, demonstrando reverência e agradecimento. Então, tomou a mão de Catarina com delicadeza e ambos saíram pela porta da frente.
***
Mal os primeiros raios de sol iluminaram as vidraças das janelas do meu quarto, escutei o ruído arrastado da poltrona da biblioteca e o aroma do café filtrado no coador de pano; conhecidos hábitos que se repediam todos os dias na casa dos meus avôs e que me transmitiam normalidade.
Com uma incrível dor de cabeça, levantei-me e desci as escadas. Senti uma leve náusea e fechei os olhos. Quando abri, vi a sala iluminada. Tudo estava bem igual. A vida começava cedo ali e eu seria o retardatário do café-da-manhã.
Andar pela sala de um lado para o outro me ajudou a acordar de uma vez por todas, mas ainda estava desnorteado, procurando outros motivos para acreditar que estava tudo no seu lugar. Sim, estava. Na mesa, apenas o suficiente para o meu desjejum. O bater dos pratos na cozinha revelava que minha avó já estava guardando parte da louça. Isso queria dizer que o resto do serviço seria meu e que meu avô estaria lendo na biblioteca. Sim, ele estava vivo! Como assim? Por que não estaria? Admirei-me com meus pensamentos.
Na biblioteca, meu avô estava muito bem sentado em sua poltrona; o corpo ereto encosta-se com conforto. Na mesa, um livro de capa dura de uma edição especial de Dom Quixote, a caneta e um bloco de anotações. Trazia o cabelo arrumado, como sempre, e a barba feita. Parei na porta e fiquei observando, pois havia algo mais que peculiar naquela cena.
— Bom dia. Isso lá é hora de acordar?! — falou rindo, mal olhando para mim. Porém, sua expressão mudou e seu rosto agora estava sério e preocupado; parecia que olhava para algo atrás de mim.
De repente, senti um dedo frio e magricela nas minhas costas. Quando me virei minha avó estava bem atrás de mim com uma caneta e um cartão nas mãos.
— Olha só quem acordou! Assina, Valentim — pediu Catarina com seriedade, entregando o cartão e a caneta para mim. — Desde ontem que eu te peço. Eu tenho que mandar para sua mãe hoje, senão ela não recebe a tempo. — disse isso e percebeu que eu fiquei paralisado — Acaba com isso de uma vez por todas.
Claro que obedeci. Não hesitei em receber o cartão e escrever num cantinho “com amor”. Logo abaixo, assinei “Valentim. 2019” e lhe devolvi o cartão.
Minha avó pegou o cartão e percebeu o erro facilmente. Devolveu o cartão para que eu consertasse o erro, sem perder a chance de fazer uma chacota.
— Acho que ainda estamos em 2018, Valentim. Conserta isso. Não sei se no próximo ano eu vou estar viva para mandar cartão para tua mãe; teu avô muito menos — asseverou vovó e soltou uma sonora gargalhada.
Dei um jeito de transformar o nove em oito. Vovô ainda olhava com o olhar perdido, observando sem muita atenção aquelas bromas da esposa.
— Romário, ainda vou pintar um retrato seu com essa cara de preocupação — brincou Catarina, sabendo que esposo não tolerava a ideia.
Quando eu já havia desistido de entender aquilo, algo me chamou a atenção e me aproximei para ver melhor. Um vento frio soprou e a porta principal estava aberta. No chão da sala, jazia um pincel fino embebido de tinta preta.

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Inspiração

O terror de quem sofre de problemas psicológicos.

Sobre a obra

Conto que narra um mistério envolvendo pesadelos e histórias reais do presente e do passado

Sobre o autor

Contista, poeta e romancista. Gosto de escrever sobre a realidade humana e despertar no leitor empatia.

Autor(a): JEREMIAS REIS COMARU (Jeremias)

APCEF/CE