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O Dia dos Mortos
O Dia dos Mortos
Antigamente, havia um muro baixo na casa do meio do quarteirão. As pedras do jardim, caiadas de branco, me faziam pensar em túmulos. Vinha um cheiro de grama cortada, e a jabuticabeira se debruçava sobre o banco de cimento, cobrindo-o com suas pequenas flores no mês de outubro. Não me lembro de quem morava lá. Só sei que a formalidade das janelas altas me assombrava. E mais de uma vez sonhei com as pedras brancas e pontudas, de onde surgiam fantasmas na minha imaginação. Hoje não existe mais a jabuticabeira, nem o banco, nem as pedras, nem o gramado: cimentaram o jardim inteiro, destruindo qualquer recordação. Ficou o vento, agitando as folhas das árvores que resistem na calçada.
Cai uma garoa fina, típica desta época do ano. Não sinto frio. Há quantos anos não venho aqui? Moro tão perto, vinte minutos de carro, e nunca dá tempo. Ou nunca dá coragem? Caminho pelo bairro, sem pressa. Por mais que as coisas tenham mudado através das décadas, ainda é uma cidade típica do interior de São Paulo. As casas térreas cobertas com telhas cerâmicas e a torre da igreja matriz ao longe, com o sino marcando as horas. É feriado de Finados; não tenho nada para fazer. Ninguém veio me visitar, estão todos cuidando das próprias vidas. Também não vou ao cemitério. Hoje está um tumulto, impossível andar, e como vou falar com os meus mortos? Eles não estão lá, mas aqui. Continuo percorrendo as ruas de minha infância, tentando resgatar os detalhes. Meu pai cantarolando uma canção do Julio Iglesias, será possível? Mal consigo ouvir. Em pensamento, vou completando a melodia, as palavras surgindo fáceis apesar de nunca mais tê-la ouvido ou cantado.
Minha família morava na esquina. Havia sempre quem perguntasse como vieram parar aqui. O vitrô da sala dava direto para a rua, assim como a varanda revestida com cacos de pisos, ligeiramente mais alta que o nível da calçada. Também modificaram vários elementos, embora mantendo o aspecto geral da fachada. Trocaram as janelas de madeira por venezianas de alumínio, e colocaram grades acima da mureta da varanda. A calçada está trincada, mas já não estava antes? Se não me falha a memória, eu vivia tropeçando nesse vão. No lugar dos inúmeros vasos de plantas que minha mãe cultivava no espaço restrito, vejo uma única samambaia ao lado da motocicleta encostada na parede. A maioria das casas no bairro não tem garagem. Foram construídas numa época em que poucos tinham carros. As imagens vão se sobrepondo. A primeira janela depois da varanda é a da cozinha, onde eu me sentava no chão para desenhar enquanto minha mãe preparava o almoço. Meu giz de cera verde que me fazia pensar em abacate, que delícia! As chamas azuis debaixo das panelas no fogão, me intrigando: então o fogo não era laranja? Na parede oposta, uma porta se abria para um pequeno quintal ladrilhado. A piscina de plástico, minha mãe com roupas de banho e um ar infeliz, que só cheguei a compreender muito depois de ela ter partido.
Há poucos dias, recebi uma mensagem da prima Carmen Lúcia no celular. Faz três semanas que tia Rosário faleceu em Madrid, e só então fiquei sabendo. Comentei: puxa, que tristeza! Nem sei o que te dizer. É uma pena, Lili, diz ela, desenterrando o velho apelido: perdemos o contato, somos desconhecidas uma para a outra. Faz décadas que não vejo a Carmen. Não consigo me lembrar de como ela se parecia quando a gente subia a ladeira correndo para comprar suspiros na venda, aterrorizando o gato da dona Nina, que ia se esconder atrás dos arcos da varanda de sua casa rica. A imagem que guardei veio depois, naquele verão em que nos tornamos desconhecidas: o rosto angelical, os cabelos compridos até a cintura, o vestido azul bem justo no corpo de dezessete anos. Ela comentou que eu parecia muito bem nas fotografias. Respondi: que nada, as redes sociais enganam, a gente compartilha só as fotos boas. Mesmo assim, comentou ela. Perdoa o meu português ruim. Que nada, estou te entendendo perfeitamente, já o meu espanhol é sofrível.
Minha mãe tinha lá suas reservas em relação à Carmen. Que moça mais convencida, dizia. Não suporto esse nariz empinado. Já a tia Rosário, irmã de meu pai, era belíssima. Mesmo depois, já idosa, sua aparência se destacava quando entrava num salão ou num supermercado. Vocês duas se parecem um pouco. Quem disse isso? Não me lembro, ficaram as palavras, a voz se dissolveu no tempo. Minha tia Rosário era tão bonita e é quase só isso que me lembro dela. Tento distinguir sua voz no emaranhado de sons que chega a mim, mas não tenho certeza se essa voz é mesmo sua.
Diziam que Vicente, meu pai, também era bonito. Eu estava acostumada a vê-lo, talvez não percebesse. Assim como a Carmen, ele nunca aprendeu a falar português corretamente, mas se fazia entender. O sotaque e os olhos claros faziam sucesso com as mulheres. O que eu sei é que minha mãe teve uma vida de cão ao lado dele, e na época eu não me dava conta. Hoje me pergunto se era tanto amor assim que ela sentia, ou se meramente não queria ser como tia Rosário. Divorciada. Aquela palavra feia que ela me dizia para não repetir, como se fosse o nome de uma doença contagiosa.
O que minha mãe diria, se soubesse que eu também sou divorciada?
Duas casas acima da nossa, morava a dona Nina, uma senhora rica, pelo menos na nossa percepção. Lembro-me dos arcos na varanda, uma estátua no jardim e a fonte onde as crianças podiam nadar. Do gato himalaia, bem peludo, os olhos azuis como os azulejos da fonte. Também do café da tarde na mesa, pães e roscas com manteiga de verdade, e aquele leite de caixinha que tinha um gosto diferente. De todas as casas, essa foi a mais desfigurada pelas reformas. Não existe mais a estátua. A fonte foi enterrada e virou um canteiro, demarcado pelas bordas dos azulejos. Que fim levou o gato? O que aconteceu com dona Nina? Eu nunca soube se tinha filhos; quem mora na casa agora? O que aconteceu com o jardim encantado, com as arandelas sinistras suavizando a noite?
Além dos olhos claros, herdei de meu pai a paixão por mapas. Olhávamos juntos o atlas que minha tia enviou da Espanha, com muitas páginas dedicadas à Europa e à Ásia, enquanto a América Latina ficava escondida em meia página no final. O Mar de Aral era um círculo quase perfeito nos mapas de 1978. Depois foi secando, ficando estreito como uma lua minguante. E eu me afligia, sem compreender a tragédia ambiental que estava acontecendo tão longe de nós, irreversível.
Quase posso ver meu pai chegando com o rosto vermelho, estacionando o carro na calçada. A rua sem saída em frente a nossa casa era revestida com paralelepípedos. Se não me falha a memória, no final havia uma cerca de bambu. Agora existe uma casa pintada num tom alaranjado, com duas janelas compridas como vitrais. Tudo tende a parecer pequeno, até a ladeira onde caí com a bicicleta e ganhei a cicatriz na boca. Até a altura da janela do meu quarto, onde eu me pendurava num ato de rebeldia. Ainda assim, a distância entre a esquina e o final da rua sem saída é intransponível. Talvez eu não queira ser vista subindo a calçada sem nenhum motivo, despertando curiosidade nos moradores. Em outros tempos, essas coisas nem me passavam pela cabeça.
Da última vez que tia Rosário e Carmen vieram ao Brasil, eu estava com dezesseis anos. Meus pais não me deixavam usar maquiagem, tinha que me vestir como criança, e a prima com aquele maldito batom vermelho, o vestido azul indecente com babados nos ombros. Na tarde em que reunimos a turma na praça, o Wagner só tinha olhos para ela. Essa moça é para casar, ficava repetindo feito um tonto. Carmen escorregava no português: gracias, Liliana, por me ensinar. Como se não soubesse que estava me destruindo. Aquilo tudo me dilacerava: e eu, Wagner? E eu? Fui ficando invisível, mera espectadora da conversa empolgada dos dois. Tia Rosário se mostrou uma aliada improvável: não queria saber de gracinhas, imagine se a menina ia casar com um pobretão feito ele. À noite, eu esmurrava o travesseiro, mas a dor não amenizava.
Continuo a minha caminhada. Eles estão comigo, posso ouvir seus passos. Tia Rosário com a beleza que nunca lhe trouxe nada de bom. Meu pai indo trabalhar de gravata, o bigode bem aparado, tão em moda na época. Minha mãe chorando enquanto lavava a louça, escondendo o rosto como se ninguém fosse perceber. A misteriosa tia Dolores, também irmã de meu pai, que morreu jovem e que eu só conheci através de fotografias. Parecia-me bonita também. Graciosa. Ainda que desbotada ao lado de tia Rosário, assim como eu ao lado de Carmen. Era a caçula, apegada ao meu pai, que falava nela com saudade. Muito triste morrer com vinte anos. Mas já se passou tanto tempo, e não a ouço caminhar. O rosto nas fotografias não tem uma voz ou um cheiro.
Por coincidência, o filho de Carmen tem o mesmo nome do meu. Perguntei-lhe: como vai o seu Miguel? Gostaria de conhecê-lo. O meu Miguel se casou, disse ela. E o meu está terminando a faculdade, comentei. Nós não combinamos os nomes dos meninos. Fiz a escolha pensando em algo que fosse fácil de pronunciar no Brasil e na Espanha. Será que ela pensou a mesma coisa? Mesmo que não tenha mais nenhuma família aqui além de mim?
Da esquina, me perco olhando o pôr do sol. Cortaram a árvore da praça onde a gente costumava subir. Ficaram as raízes, enormes elevações de madeira onde ensinei Carmen a se equilibrar, dando voltas e voltas. E aquela pequena, que haviam acabado de plantar, agora está irreconhecível. Será a mesma, ainda? Tão inocente, parecia uma vara de pescar, amarrada no suporte. Mas bem que rasgou o uniforme do Wagner quando ele esbarrou nela, o que lhe rendeu uma discussão com a mãe.
Então, foi tudo por causa do Wagner?
Eu mal me despedi de Carmen quando ela foi embora. Tia Rosário me deu um beijo na testa. Seja uma boa menina, respeite seus pais, se esforce nos estudos, ouviu? E fui me refugiar no quarto: quero ver agora, Wagner, nunca mais o batom vermelho, as ondas suaves dos longos cabelos. Mas os meses se passaram, e Wagner nunca olhou para mim daquele jeito. Fui conhecendo novos amigos, ampliando meu círculo. Não sei por onde ele anda. Talvez nem o reconheça. Talvez nem tenha sido amor.
Que moça mais convencida, dizia minha mãe. E internalizei esse preconceito, além da antipatia que eu tinha por conta da beleza de Carmen.
Nas mensagens que trocamos, ela não me pareceu arrogante. Contou que trabalha como enfermeira na ala infantil de um hospital. Uma profissão desgastante, mas que ela ama, porque a ideia de se doar ao próximo a motiva. O marido está perto de se aposentar. Não perguntei o que ele faz da vida, para não soar indelicada. Ainda tenho as boas maneiras que meus pais ensinaram. Nossa família foi minguando, geração após geração, como o Mar de Aral. De todos que caminharam por este bairro, só ficamos Carmen e eu.
Tudo é transitório. Meu grande e trágico amor por Wagner não me parece agora uma fantasia da infância? Nem mesmo as pedras caiadas de branco permaneceram, e há muito não me aparecem em sonhos; também não consigo reconstruir o pavor que me causavam. Talvez os filhos de Miguel no Brasil e de Miguel na Espanha nunca saibam quem foram Vicente, Rosário e Dolores. Nem tampouco que caberá a eles perpetuar a beleza dos três irmãos através das gerações.
Faz tempo que a garoa parou, mas somente agora me dei conta. Estou suspensa, os pés mal tocam o chão. Das águas profundas de minhas lembranças emerge um remorso, um amor dolorido por Carmen, a pessoa mais próxima de uma irmã que jamais tive. Preciso guardar um dinheiro e ir para a Espanha, enquanto ainda há tempo. Enquanto não nos reunirmos aos fantasmas dos ancestrais que me acompanham pelas ruas do bairro, que vivem nela e em mim.
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Inspiração
No dia de Finados, eu estava caminhando pelo bairro onde passei uma parte da infância e percebi que estava tudo bem diferente. Foi de onde surgiu a inspiração, O resto é uma mistura de realidade com imaginação...
Sobre a obra
É um conto escrito em primeira pessoa, onde os fatos do presente e do passado se confundem.
Sobre o autor
Sou autora dos romances “A Herdeira do Silêncio”, “Um Céu de Estrelas Curiosas” e “O Ano em que não Choveu”, além de diversos contos e crônicas. Procuro apresenta um olhar lírico sobre o cotidiano, convidando à reflexão sobre a desigualdade social e os dilemas do mundo moderno.
Autor(a): JENNY ALEXANDRA RUGERONI (Jenny Rugeroni)
APCEF/SP