Talentos

A Aparição

A APARIÇÃO
E P Vogelmann (1)

Acordei com o alarido dos pardais, que em bando, tuitavam em busca de lugar entre os galhos do arvoredo que cercava a nossa casa. Ainda confuso, sentei-me na cama, tentando discernir se era de manhã ou fim de tarde.
Minha mãe exigia que eu dormisse após o almoço. É que o meu turno de aula, naquele ano, era diferente; começando as nove e terminando as duas da tarde. Meu almoço era solitário, quando então, meu prato-feito me esperava dentro do forninho do fogão a lenha. Era comer e dormir.
O zelo de minha mãe pela minha saúde se intensificou com a morte prematura de minha irmã, e dois anos mais tarde, um acidente levou um outro irmão. Os infortúnios a deixaram traumatizada e a fizeram considerar nas providências para que eu não fosse o próximo, devido a minha constituição franzina. Felizmente agora, ainda que eu já tivesse oito anos, ela insistia que eu deveria dormir à tarde e que isso me faria crescer mais forte.
Até hoje não gosto de dormir durante o dia. Acho que é sinal de um trauma, pois perdia as brincadeiras com a turma de crianças da nossa rua. Sei que minha mãe fez o melhor que sabia e não a culpo por isso, afinal, tinha seus motivos e suas crenças. E quando acreditamos em uma teoria; aprendi que o melhor é seguir à risca as instruções para não se arrepender com a hipótese do destino se confirmar e não haver seguido a bula. Aí seria culpa, com certeza.
Sentado na cama ouvi o “beto borrachinha” gritar do lado de fora: - Um, dois, três pro Jânio!
Então confirmei meu espaço temporal e sabia que já era fim de tarde. Meus amigos já estavam brincando de esconde-esconde na esquina da rua, bem perto da nossa casa e os pássaros estavam na verdade, buscando um lugar para dormir. Era o mês de julho, inverno, quando o crepúsculo se aproximava mais cedo e as horas de luz solar se esvaiam.
Saltei da cama e corri para fora no intuito de aproveitar o finzinho do dia.
Minha família era grande. Já fôramos quinze; treze irmãos e meus pais. Uma festa cada dia, porém, alimentar o regimento exigia o esforço de todos, tanto que naquele momento, somente estava em casa a minha irmã mais velha, para cuidar da casa. Os demais, estavam cuidando de alimentar as vacas, porcos, galinhas e tudo o mais que a pequena propriedade da família o permitia abrigar.
Cheguei bem a tempo do início de mais uma rodada, e por costume, o último a entrar na brincadeira deveria fazer a vez do procurador. Aceitei, afinal, era a regra.
Estavam ali, Beto Borrachinha, Jânio, Luio, Caolho, Cebola, Galo-fino, Tampinha, Zé, Zebinha, Flávio e eu. O Beto Borrachinha, recebera o apelido devido a sua cabeleira que para mim, lembrava umas molinhas. O Caolho, era um amigo estrábico, e quando encarava alguém para falar, fechava um dos olhos parecendo que lhe faltava um deles. O Cebola, tinha um rosto redondo e um cabelo ralo, cujos fios pareciam mesmo raízes da planta. Seu apelido era tão forte que não consigo lembrar o seu nome. O Galo-fino, cujo nome era Luiz, tinha um porte magro e alto, o maior de todos nós e com suas pernas finas e longas, sua franja caída sobre os olhos e o nariz adunco, parecia mesmo um galo de rinha. O Tampinha, cujo nome era Valmor, recebeu esse apelido por ser o menor da turma, descobrimos depois que ele tinha problemas de crescimento, no entanto, quando chegou aos treze anos disparou a crescer e ficou enorme. A mãe dele disse rindo, anos depois, que havia lhe dado fermento para comer. E finalmente, Zebinha, que não era amigo do banho e tinha mesmo um cheiro de ranço, lembrando cheiro de cebo, razão do seu apelido.
Pensando agora, lembro que não havia nenhuma menina no grupo. Estranho, ainda que de vez em quando elas brincassem com a gente.
Encostei-me na parede da casa, coloquei o braço sobre os olhos e comecei a contagem até cinquenta. Eu ainda me confundia com os números, tanto que rodei na primeira série. Então, acho que demorei bastante tempo para fechar a contagem. A turma teve tempo suficiente para buscar um bom esconderijo.
- Lá vou eu! – Gritei para alertar os escondidos.
O Cebola, achei rapidinho. Ele estava dentro do bueiro. O lugar mais óbvio, mas sempre alguém se escondia ali, no entanto, o Luio e o Beto Borrachinha, surgiram correndo e conseguiram escapar, alcançando a raia e ficando livres. O Jânio e o Caolho, eu os vi atrás de um arbusto de cerca-viva, plantado rente a rua. Dois a menos. Andei até o canto da casa e pude ver o Zebinha e o Flávio se esgueirando, tentando espiar onde eu estava. Enfim, estavam quase todos descobertos. Faltava descobrir o esconderijo dos três faltantes. Assim, enquanto me afastei para procurá-los, deixei a raia desprotegida e ao olhar para trás vi o Galo-fino e o Tampinha batendo na lateral da casa: - Um, dois, três pra nós!
Enfim, faltava o último, o Zé.
Enquanto os demais esperavam impacientes, me afastei para procurá-lo. Enfim, fiz o contorno ao redor da casa e nada. Estranho, pois ele não apareceu para bater na raia enquanto me afastei. Quando fechei o circuito a gurizada já estava ansiosa, afinal, onde o Zé teria se metido? Se ele não aparecesse logo, não daria mais tempo de outra rodada.
Foi quando todos olharam para uma grande pedra, postada a beira da rua, distante uns cinquenta metros da casa. Em meio ao lusco-fusco, eis que lá estava ele, traído pelo seu guarda-pó (uniforme da escola), todo branco, fácil de achar. Corri para a raia e gritei: - Um, dois, três pro Zé!
Estava fechada a rodada. Daria tempo para mais uma.
No entanto, o Zé não veio. Não saiu detrás da pedra. Em uníssono gritamos para ele: - Vamo Zé, sai daí!
Então fomos surpreendidos pela sua voz vindo da sua casa, do outro lado da rua: - Eu já vim pra casa! Não vou brincar mais!
Olhamos em direção a casa dele e eis que ele estava no portão. Olhamos para a pedra e eis que ainda havia um menino com sua roupa branca, em pé atrás dela. Gelamos de medo, todos, pois nos veio a lembrança de uma estória que o seu Laureano contara outro dia, enquanto a turma toda jogava bola de gude na faixa de chão batido ao lado da casa.
Seu Laureano era o curandeiro da vila. Nós, crianças, tínhamos um certo medo dele. Diziam que ele era um bruxo, capaz de fazer feitiços, no entanto, era comum que muitas das mães levassem seus filhos para serem benzidos e tratados com chás, unguentos, e até mesmo com a confecção de amuletos que levavam pendurados no pescoço após a consulta. Eu mesmo passara por alguns tratamentos. Pelo sim e pelo não, parece que muitos se curavam das enfermidades, afinal, naquele subúrbio, longe do socorro médico e na pobreza, ele se mostrava um médico eficaz.
O bruxo havia contado que ali, naquela rua passavam os tropeiros. De fato, a rua Cassal Brum era passagem de boiada a muito tempo. Ainda me lembro da poeira que o tropel provocava. Minha mãe se irritava e corria para recolher a roupa da cerca, que mesmo assim ficava coberta de terra.
Enfim, contou ele: - Uma tarde destas, como hoje, no fim de tarde, uma tropa avantajada de uns cem bois entrou pela rua. Um menino, filho de um dos tropeiros, conduziu seu cavalo para afastar o gado do costado da rua, onde havia uma barroca. Por descuido, o cavalo tropeçou e ele caiu, batendo a cabeço sobre aquela pedra grande, que ainda está ali, na beira da rua. Passou a boiada e ficou o menino.
Por isso agora, no entardecer, quando o sol dificulta a visão é possível ver a alma do pobre peão-menino que se levanta do chão e fica em pé ao lado da pedra.
A lembrança do causo, nos fez corrermos para nossas casas, afinal, uma aparição como aquela poderia não ser amistosa.
Contei para a minha irmã que estava em casa e mesmo incrédula, foi comigo até os fundos e olhamos através da vidraça. Não vimos nada. O acontecimento me tirou o sono e não consegui dormir naquela noite, pensando no fantasma.
Hoje, fico pensando e compreendo que o menino queria brincar com a gente. Nossas crenças o fizeram desaparecer para sempre, pois nunca mais o vimos.
A pedra grande foi enterrada quando a prefeitura mandou alargar a rua.
Quem sabe assim, com o enterro da pedra, finalmente, a alma do menino foi libertada ou se encarnou em outra vida.

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Inspiração

A Academia de Letras de Carazinho fez um convite para que os seus membros escrevessem crônicas inspirados em acontecimentos reais. Então, disperso em meus pensamentos lembrei do meu tempo de criança e dos medos e das histórias que os adultos contavam à noite. Dai surgiu "A Aparição".

Sobre a obra

É uma narrativa ficcional inspirada na realidade.

Sobre o autor

Sou economiário aposentado, economista, professor, palestrante, escritor, membro da Academia Carazinhense de Letras – ACL e produtor cultural. Desd3 de criança sempre gostei de escrever. Continuei escrevendo na fase adulta e agora estou me desafiando na arte do artesanato. Acho importante desenvolver múltiplas habilidades. Isso faz muito bem.

Autor(a): ERVINO PAULO VOGELMANN (E P Vogelmann)

APCEF/RS