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Anselmo na varanda
Anselmo na varanda
O velho Anselmo sempre estava na varanda, sentado na cadeira de balanço próximo a janela. Espreitava todo o movimento do prédio. Para alguns moradores ele acionava, gentilmente, o dispositivo que abria o portão de entrada. Ele tinha algum ranço com certos vizinhos e, vez ou outra, gritava que não era empregado do condomínio. Mas na maioria das vezes era silencioso expectador.
Comigo, sempre cordial. Eu fazia parte dos residentes agraciados com a cordialidade daquele velho simpático. Quando me aproximava da entrada do edifício o portão se abria. E ainda ganhava um discreto aceno.
Nunca conversei com Anselmo e pelo que fiquei sabendo, ele era ferroviário aposentado. Tinha sido maquinista e fez muitas vezes a linha Uruguaiana até Santa Maria. Estava batendo na casa dos noventa anos. Hoje, era apenas um ancião sentado em sua varanda a contemplar o movimento da rua e o entra e sai da vizinhança. Nunca tinha visto o velho maquinista a não ser no vai e vem de sua cadeira de balanço na varanda. Não sabia muito da história do velho do térreo que me abria o portão e sorria disfarçadamente.
Outro dia comentando com a vizinha de porta, ela não foi nada amigável.
– Velho ranzinza que implica com todo mundo e fuxica a vida de cada um dos moradores. É um enxerido – baixou o tom da voz e se aproximou do meu ouvido. – Dizem que foi torturador.
– Mas ele foi ferroviário! – retruquei.
– Ferroviário e torturador... dedo duro – falou incisiva.
Logico que a vizinha me proporcionou algumas desconfianças passageiras. Lembrei do Cabo Anselmo, conhecido traidor das causas dos revolucionários. Mas era apenas um tocaio do cabo. Eu não conseguiria imaginar um ferroviário torturador. Por que um simples trabalhador maquinista estaria a serviço da ditadura? Agora, dedo duro, até pode poderia. Mas não acreditei na versão da vizinha. Preferia o cordial sorriso do ferroviário. Eu também faço parte da linhagem ferroviária e simpatizei com o velhote.
Continuei com minha rotina e sempre lá estava o velho Anselmo na varanda a abrir o portão. Mas, justamente, num dia de chuva ele não estava lá. A janela totalmente fechada. Catei minhas chaves na maleta e me molhei um bocado. Num primeiro momento não me impressionou a ausência do velho da varanda. No terceiro dia julguei que havia acontecido alguma coisa. Será que o vizinho adoeceu?
Outro dia chegando do serviço e com sacolas do mercado e caia uma leve brisa – aquela chuvinha de molhar bobo –, e percebi que a janela da varanda estava aberta, mas o vizinho não estava em sua cadeira de balanço. Uma pena, pensei. Até me bateu uma certa melancolia.
Era um vizinho simpático, pelo menos comigo. Entrei no prédio e uma senhora me aguardava na porta do apartamento. Cumprimentou-me com um amável boa-tarde e me disse que seu pai queria falar comigo.
Entrei no apartamento e vi seu Anselmo postado diante da mesa e me convidou para sentar. Observei, na parede da sala, um quadro em que constava as fotos de Getúlio, Jango e Brizola. O velho é trabalhista, pensei.
– Veja esta foto meu filho – ele me chamou de meu filho... – São ferroviários... década de 50 lá em Rio Pardo. Eu e teu pai estamos nela, trabalhamos juntos na Viação Férrea. É um presente para o senhor – agora me chamou de senhor.
– Que agradável surpresa – o velho me comoveu com o presente.
– Eu e minha filha estamos de mudança, vamos voltar para a minha terra. Vou encerrar meus dias no solo onde nasci.
Agradeci a gentileza e abracei o seu Anselmo, me despedi de sua filha e saí.
Subi as escadas para o meu apartamento... pensativo. O velhote pesquisou sobre a minha vida... um fuxico do bem. Mas a minha vizinha de porta é fofoqueira. Uma baita fofoqueira!
Por onde andará o Cabo Anselmo?
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Inspiração
Um velho sentado em uma varanda a contemplar o movimento da rua.
Sobre a obra
Coloquei um passado maquinista e como colega de meu pai. Aí surgiu o conto "Anselmo na varanda".
Sobre o autor
Sou graduado em Engenharia Civil e aposentado da Caixa. Autor dos seguintes livros: Os agachados – crônicas da Era Lula; Contos de Chumbo; Tintos e Contos; O código Locatelli; Sofrendo em Paris; Contos de Prata e O Zapzap das flores.
Detentor da cadeira número 32 da Academia Santa-Mariense de Letras.
Sócio Efetivo da Estância da Poesia Crioula.
Autor(a): ATHOS RONALDO MIRALHA DA CUNHA (Athos Ronaldo Miralha da Cunha)
APCEF/RS
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