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Contos Exilados II

Contos Exilados II

Mamma,

Escrevo sob a luz do luar. A lua é cheia e alumia tudo na senzala. Os raios prateados passam pelas frestas dos caibros e telhas, que foram feitas nas minhas coxas e das nossas.

Todos essa hora dormem. Os que estão acordados, gemem de dor ou de amor. Eu escrevo, pois a dor no peito ficou maior do que a que ainda estala nas minhas costas, do último açoite que levei.

Mas vai cicatrizar e passar, não se preocupe. Não vou morrer de surra, pois sou forte. Nem vou levar tiro – não vou fugir. O meu senhor sabe que mais valho viva do que morta. Também amamentei o filho dele e da Dona Austéria.

Vou escrever e esconder. Se um dia eu estiver pra morrer e não conseguir lhe entregar esses dizeres, vou jogá-los na fogueira. E devo ir junto. Para que as cinzas das palavras e da minha carne cruzem o oceano e façam o caminho de volta. Não dentro dos navios negreiros, nem atolados nos porões imundos, fétidos e úmidos de uma Nau que só fez o mau: vou de carona com o vento – ou ao sabor da maré, voltando direto ao solo sagrado, sem procurar caminho para as Índias.

Desde o dia que nos capturaram, mãe, o fim começou.

Veio eu e o pequeno. Benko morreu na invasão – talvez tenha tido mais sorte do que a gente.

Devo minha vida ao pequeno. Estou viva agora, por ele, para ele. Na travessia, o banzo quase me leva – dias de ondas, tempestades e um desejo de não chegar. Mas tê-lo em meus braços, no meu peito, foi a coragem e a fortaleza.

Meses depois, mãe, senti o mesmo que a senhora sentiu quando soube que eu fui pega e vendida como escrava: levaram o pequeno. Perdi.

Nada disseram. Não sei se venderam, o que e o porquê fizeram. Sem pátria, sem mãe, sem marido e agora sem filho. Viver é uma teimosia.

Alguns sussurram que devemos nos insurgir, tomar a chibata, rebater e fugir pro quilombo. Não tenho forças nem vontade. Na verdade, o que me prende é a esperança que o pequeno volte pra cá – que nem as aves fazem, voltando para casa. Pensando que ele saiba que aqui, na senzala, seja sua casa.

Se ele puder, menino guerreiro que já é, que ele volte pra aí! Pro nosso terreiro. Pra nossa terra, seca, quente e nossa. O cheiro da savana pra mim é mais doce do que a fumaça que sobe das caldeiras do caldo de cana.

Que um dia o pequeno apareça aí. Para que no pescoço ele possa usar um lindo colar de Rei– ao invés das pesadas correntes que agora me prendem.

Eles podem me escravizar. Violar meu corpo, matar meus sonhos. Me açoitarem, tentarem me destruir. Mas quando morrer estarei livre – não há grilhões que me prendam para sempre. E, ao fim, voltarei pra você, mamãe, com meu pequeno no colo para a senhora dar sua bênção.

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Inspiração

Quem são os exilados? Quem foram os exilados? Conto a saga de uma mãe (mesmo sendo pai), em primeira pessoa, que escreve pra sua genitora, falando dos dissabores do exílio e do que a mantém viva.

Sobre a obra

Em primeira pessoa, redijo o conto, como se o eu lírico, exilado, falasse das dores e doces da vida longe de casa para os entes queridos.

Sobre o autor

Leio por prazer, escrevo por ousadia.

Autor(a): FAUSTO DE ARAUJO NETO (Fausto Neto)

APCEF/RN