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Olhos Certos
Olhos Certos
Órfão aos dois anos de idade, Jorge só tinha uma recordação de sua mãe. Não se lembrava da voz, do toque, ou do seu cheiro. Não tinha um só vídeo para que pudesse ver a imagem de sua mãe em movimento e para ouvir, de novo e de novo, sua mãe o chamar pelo nome.
Ele só se lembrava dos olhos de sua mãe. O olhar materno que o acolhia e que ficou gravado na retina, no seu espírito, sendo a única memória que guarda desde então de sua mãe.
Não se recorda por ouvir dizer ou por imaginar. Nem remonta à cena ao rever uma foto. Ele se lembra porque a imagem não sai da sua cabeça. O quarto de azul acetinado, o abajur que deixava uma meia-luz aconchegante, os poucos bichinhos de pelúcia na estante e os enfeites em cima do berço: tudo isso era figuração, ensaio e decoração para fazer cena do que viria – o olhar da mãe.
As paredes do quarto, pintadas de um azul suave, eram como um céu ao entardecer, trazendo uma calma ilusória. O abajur, com sua luz amarelada, projetava sombras delicadas dos brinquedos sobre o berço, como se fossem guardiões silenciosos daquele espaço.
Desde a partida de sua mãe, o silêncio parecia mais pesado, quase tangível, preenchendo todos os cantos da casa. Os ruídos que antes eram comuns – o ranger das tábuas, o farfalhar das folhas – agora soavam como lembretes dolorosos da ausência.
Eram dois olhos azuis. Um azul oceânico de alto-mar. Profundos. Mas que acolhiam e abraçavam aquela criança. Se tornavam claros e rasos, mais cristalinos do que mares caribenhos, que deixavam mostrar a areia da alma. A criança se embalava ao fitar aqueles olhos.
Aquele olhar, tão vívido em sua memória, tornou-se uma bússola emocional para Jorge. Em momentos de dúvida, ele fechava os olhos e tentava se lembrar da profundidade daquele azul, buscando orientação e conforto. Como poderia aquele par de olhos ser tudo o que restara? Jorge se perguntava, dia após dia, se sua mãe sabia que ele ainda se lembrava. Seria suficiente? Ele desejava desesperadamente que a lembrança fosse mais, que ele pudesse ouvir sua voz, sentir seu toque.
A última cena que o par de olhos maternos viram foi Jorge no berço. Os olhos se cruzaram e num átimo a mãe pôs a mão no peito e subitamente foi ao chão para não mais se levantar.
E mesmo agora, tantos anos depois, Jorge se pegava encarando o espelho, buscando nos próprios olhos algum vestígio daquela cor oceânica, como se quisesse encontrar ali o mesmo conforto que um dia sentira. Mas tudo o que via era a escuridão de sua própria solidão, contrastando com a clareza que ele se lembrava tão bem.
Olhos perto. Olhos certos. Olhos cerrados.
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Jorge então foi criado órfão de mãe. Tinha pai, mas era como se não tivesse.
O Dr. Rômulo, Desembargador aposentado, em atividade. Era um pai provedor. Não deixava faltar nada para o pequeno Jorge. Forneceu as melhores escolas, cuidadoras, babás e atividades extracurriculares. Não se casou novamente, mas tinha namoradas e companhias profissionais que não lhes deixava só, embora nunca lhe tirassem da solidão.
Jorge procurou o carinho do pai e não encontrou.
Procurava-o a noite, quando acordava em sonhos aterrorizantes, batia-lhe a porta do quarto para pedir abrigo, que sempre estava trancada. Às vezes ouviu o silêncio. Noutras, um ronco ensurdecedor e quando tinha as visitas das namoradas, ecoavam gemidos do quarto, calando as batidas secas de Jorge na porta.
Buscou, em vão, encontrar os olhos do seu pai. Tentava mirar, apreciar o olhar do pai, para assim restabelecer um laço que nunca sentira, entre eles e sua mãe.
Mas o Dr. Rômulo não lhe fitava os olhos. Seu olhar fugia de qualquer encarada. Mirava o além, o vazio, acima ou abaixo. Desviava o que não queria encarar.
E assim Jorge se criou, sozinho, também órfão de pai vivo.
Seguia fascinado pela mágica do olhar. Do olho no olho. Do brilho. Do sorriso pelo olhar. Do contraste da íris, seja ela de qual cor fosse, com o branco do olho, quase que como uma obra de arte numa tela.
Decidiu então fazer vestibular para Medicina. Antes mesmo da prova já sabia qual seria sua especialidade: oftalmologia.
Um dia, voltando do cursinho, escutou do quarto um estampido seco. Barulho de tiro. Fechou os olhos. Mesmo com medo, correu em direção de onde vinha o barulho. A mesma porta que tanto batera para entrar, viera do quarto do seu pai.
Estava, dessa vez, aberta.
Jazia na farta cama o Sr. Rômulo e formava um véu de vermelho vivo, ao seu redor.
Um balaço na boca.
Jorge correu até o seu lado. Não procurou falar com o pai ou chamar socorro. Ficara indiferentemente satisfeito por seu pai não ter disparado contra as têmporas e eventualmente ter estourado os glóbulos oculares.
Queria finalmente ver os olhos do seu pai, calmamente e sem chance de desvio, olhos nos olhos, ainda que estáticos.
Olhos perto. Olhos incertos. Olhos abertos.
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Inspiração
Uma conversa informal com um amigo oftalmologista, me veio a ideia do conto.
Sobre a obra
Contação de história tendo por mote os olhos.
Sobre o autor
Transcrevo os pensamentos e devaneios.
Autor(a): FAUSTO DE ARAUJO NETO (Fausto Araújo)
APCEF/RN