Um dia sonhei com uma noite diferente das outras
Acordei assustado com lembranças loucas
Que não eram, há tempo, minhas primeiras
Memórias de máscaras manchadas em trincheiras,
Caídas deixando à mostra sorrisos podres de intolerância
Retorcidos em bocas pueris de segunda infância
Vi homens bebendo o ódio
Como se fosse ele um remédio
Para dores que não eram deles
Abençoadas pela raiva, vi mulheres
Combatendo em gatilhos de dedos trêmulos,
Enfrentando monstros que dispensam preâmbulos
Vi crianças-bebês esquecidas sob escombros
Carregando a pesada tristeza do mundo em seus ombros
Caídas na sarjeta, largadas e feridas debaixo da chuva
Pesada, grossa de poeira fétida, salgada e alva
Apareceu-me um qualquer, perguntei-lhe: “E aí, meu irmão,
Qual é a guerra que explode em teu coração?”
Surgiu solitário, sem alma, somente carcaça num corpo colorido
Depois que o último sopro de morte cantou o canto dolorido
Das farpas voantes que se cansam e cravam no peito
Como se de amontoado de músculos e órgãos e sonhos fosse feito;
Já drenado o sangue que não mais corre, mas escorre pelos bueiros
Daquelas vielas esquecidas num canto redondo do globo inteiro
Por todos os seres humanos a que tudo observam,
Vítimas da melancólica incerteza que os dias futuros reservam,
Sitiados em uma época, no tempo ou rua distante
O coração em desespero pedido socorro - chamado frustrante!
Como se sonho fosse, como se mera ilusão
Chamado das vozes que sofrem e gritam e pedem perdão
Com a existência manchada pela culpa que acompanha na vida
A dor que é saudade da felicidade gasta na esperança vivida
Somos todos reféns amordaçados em uma guerra constante
Na qual não se encontra motivo contundente ou porquê relevante
Além de vaidade, do poder que dá sede e de desculpas esfarrapadas
Que justificam a mesquinhez do fuzil que combate a espada
No campo de batalha onde a provisão mais incessante é o rancor
A derrubar corpos e vidas e futuros, no presente, enterrando o amor
Quando acordei, senti já fraca minh´alma tomada de açoite
Vi que, no despertar, só o que resta são aqueles dias feitos noite
Terreno infértil onde sonhos estranhos nos pegam e não largam cedo
Nos fazem suar, decoram arrepios e provocam o medo
Do ser que um dia foi humano em toda atitude
Mas que hoje perece frente à perplexidade de sua finitude
Nessa noite de guerra, de sonhos terríveis, veio o grito primitivo
Um canto de dor, singelo lamento, verbo feito substantivo
Certeza a mostrar um futuro moldado apenas em expectativa
Quando homens cegos se lançam ao ódio em comitiva
Deixando para trás o caminho trilhado por vagas lembranças
De tudo que não se viveu nem mais viverá por temer a esperança
Encontrar à sua frente um humano sem ser, em andrajos e imundo
No inabalável exemplo da completa ignorância do mundo
Tão triste e perpétuo quanto risível,
Ainda que óbvio e plenamente discutível
Quando tudo de bom que sustenta o coração se vai
E todo belo sentimento como fumaça se esvai
Vêm o fenecer da essência e a aurora da vida cantando em coro
Com sua voz fraca, augúrios ao vento, quase como num choro:
“Triste verdade essa realidade
Falta faz a alegria a alimentar a vontade
De voltarmos a ver, na sincera urgência, como já era
A vida antes desse tempo em que o perene perecer prepondera
Tão frio e confuso
De contorno difuso
A tristeza por companheira
Somos soldados em fileira
Guerreiros sem abrigo
Enfrentando o inimigo
Tal é o tempo cruel
Com seu beijo de fel
Até que conheçamos,
Passem dias ou anos,
O fim, inevitável e insano,
Que traz o pere(s)er humano.”