Meu pai

Meu pai

Nunca imaginei que chegaria aos sessenta anos de idade com meus pais vivos, mas aqui estou. Minha mãe, oitenta e seis anos, ainda conserva belos traços e a lucidez, mas a visão a abandonou. Meu pai, aos noventa, vítima do alemão*, flutua entre a serenidade e momentos de total demência, total confusão.
Ele olha para minha mãe e diz que é a mãe dele, que é brava e que vai castigá-lo. Ela ri. Ele então olha para mim e me diz que eu sou bonita, me pergunta se quero me casar com ele. Também acho graça.
Eu e meus irmãos nos revezamos a passar os dias fazendo companhia aos dois. No meu dia, cuido especialmente do meu velho, dou banho, faço a barba, deixo-o bem confortável. Não toda vez, claro, quando ele permite. Quando ele está bem e somos amigos, quero dizer.
Meu pai sempre foi meu melhor amigo, eu, muitas vezes, não o compreendi. Não conseguia perceber que, houvesse o que houvesse, ele sempre seria meu amigo.
Quando eu estava na adolescência, meu pai era o mais engraçado da rua, o mais animado. Éramos pobres, mas não nos faltava o essencial. E nossa numerosa família, tenho sete irmãos, vivia razoavelmente bem. Apesar de ele nunca ter tido um emprego de carteira assinada, como se dizia.
Meu pai plantava milho, feijão, batata, frutas; criava porcos, pescava, fazia queijos artesanais, não parava. E vendia o que colhia, pescava, fazia. E nós comíamos o que ele produzia. Mas para minha mãe, isso nunca prestou, bacana era ser como nossos tios que trabalhavam em empresas e viviam carrancudos, cansados e de mal com a vida. Para ela, meu pai bonachão e brincalhão era, na verdade, uma aberração.
E ela não o poupava, xingava, cobrava coisas que ele não queria, não podia oferecer.
E, mesmo para mim, havia algo que incomodava, lembro-me que meu pai machucou o pé e, para não infeccionar, abriu um buraco na botina. Era o jeito dele de tratar suas feridas, mas aquela botina com aquele enorme respiradouro aberto me envergonhava. Ele passou por mim e uma colega da escola com a tal botina e minha colega disse: “Olha o pé do homem” e riu. Baixei a cabeça e andei rápido para que ele não me cumprimentasse e não me constrangesse. Eu era adolescente, não saberia lidar com a situação. Acontece que ele percebeu. Quando cheguei em casa, ele fez a maior festa, contou a todo mundo que eu corri dele só por causa da botina, que eu era uma boba, que a botina dele era algo moderno, algo para a ciência estudar e ajudar às pessoas. No começo dessa brincadeira, fiquei meio aborrecida, achei que ele tinha ficado magoado, mas logo vi que meu pai não estava nem aí para o que pensavam e me perdoou pela minha criancice.
Era isso, eu tinha vergonha de meu pai porque ele não era como os homens da rua, ele não se importava com o que achavam dele, fazia o que queria, como queria e era mais feliz que os outros. Como essa felicidade incomodava minha mãe, eu achava que estava errado.
Uma tia minha achava meu pai muito bacana e me dizia que eu ainda era criança, mas ia crescer e entender que ele era um cara legal, acho que era assim que se dizia.
Cresci, fiquei moça, fui trabalhar no comércio no centro da cidade. Já conseguia compreender melhor meu velho, mas tinha um pouco de ciúme dele, ele sempre me parecia agradável demais com as mulheres. Ou era a influência de minha mãe que desconfiava até da sombra dele? Mas como ela sempre o destratava, achava também que ele procurava manter uma certa distância dela. Hoje sei que eles se amam, mas houve momentos em que queriam distância um do outro. Na minha juventude, não entendia isso. Hoje, casada, com filhos e tendo vivido as agruras de um relacionamento, consigo compreender.
Naquela época, meus pais viviam um momento de distanciamento e, um dia, eu o vi na rua e estranhei o fato de que me parecia que uma mulher o seguia a alguns passos de distância. Fui até ele, cumprimentei-o e começamos a conversar; observei que ele parecia ter pressa e que a tal mulher também havia parado quando ele parou. Logo ele se foi e ela atrás. Com a pulga atrás da orelha, segui-os à distância. Ambos foram para a praça central da cidade, sempre mantendo a distância, mas quando chegaram atrás do coreto, ele se sentou em um banco e ela veio e se sentou ao lado dele. Os dois deram-se as mãos e assim ficaram, embevecidos um com o outro.
Fui para casa e, que besta fui, contei para minha mãe. Foi uma situação horrorosa, eles brigaram, minha mãe até já sabia quem era a mulher, foi à casa dela, fez um escândalo. Meus irmãos ficaram revoltados com meu pai e eu fiquei muito mal por ter sido a causadora de tanto reboliço. “Mas pai, você estava traindo minha mãe”, eu disse, “E agora me sinto como se o mundo fosse cair e me sinto tão culpada”. Meu pai, tranquilo, me acolheu. “Filha, eu e sua mãe estávamos meio distantes e eu até já estava achando que nossa relação se acabaria. O que aconteceu a deixou brava e me mostrou que ela ainda me quer. Vida que segue.”
E a vida seguiu e aqui estamos, até hoje, o casal está junto e um cuida do outro lá à sua maneira.
Dia destes, dia de minha visita, meu pai me surpreendeu com um pedido inusitado, queria passear ao fim da tarde para ver o céu. Levei os dois para a rua, passamos na casa de minha irmã e lá deixei minha mãe, peguei no braço de meu pai e saímos caminhando pela tarde. No fim da rua da casa deles há um parque gramado com muitas árvores. Fomos até lá. Passos lentos de um velhinho, mas com brilho nos olhos, querendo chegar. Entre as árvores, parou olhando para o céu e começou a falar. “O céu continua como quando eu era moço, as nuvens parecem animaizinhos de algodão. O lusco-fusco da tardezinha quase noite deixa essa coloração amarelada e avermelhada lá no horizonte. Que saudade de todas as vezes que eu voltava para casa depois de um dia de trabalho na roça. Que saudade!”
Então, depois desse momento lindo, olhou para mim e disse: “Moça bonita, obrigado por me trazer aqui. Agora pode me levar de volta para casa? Minha mulher deve estar me esperando.”
Chorei, olhei para aquele velhinho com tanto carinho, beijei-lhe no rosto, peguei seu braço e fizemos o caminho de volta. Na casa de minha irmã, entramos, tomamos um café e voltamos para a casa deles, os três. Não nos falamos no caminho, os dois chegaram exaustos e logo foram cuidar de suas vidas. Despedi-me e fui para minha casa.
No caminho da minha casa, fiquei pensando em quantas vezes eu e meu pai tivemos bons momentos juntos, mas aquele momento desta tarde foi por demais especial. Meu pai sempre foi e sempre será para mim essa pessoa maravilhosa que descreve o céu e me faz chorar...
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* Mal de Alzheimer

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Inspiração

Uma prima que cuida dos pais em revezamento com os irmãos foi minha inspiração para o conto.

Sobre a obra

Tenho por hábito escrever as histórias que gosto de contar. Também faço cursos de escrita na internet para me aperfeiçoar.
Mas escrevo intuitivamente.

Sobre o autor

Arremedo de artista, gosto de desenhar, pintar, escrever, cantar...

Autor(a): JOAQUIM MARCELINO DE ANDRADE NETO (Marcello Netto)

APCEF/DF