Sementes e gerações

Sementes e gerações

Etelvino era sério e sisudo, característica herdada do temperamento do pai e da forma rude como fora criado. Não lembrava de ter sido criança, não lembrava de brinquedos, nem de correrias e algazarras, coisas corriqueiras para o mundo infantil.

Lembrava sim, do trabalho. Mal havia conseguido se equilibrar sobre as pernas e já começou a alimentar as galinhas, os porcos e a conduzir, ao lado do pai, as vacas para a ordenha manual. Aos oito anos já empunhava a sementeira, andando horas a fio jogando sementes nos sulcos abertos na terra pelo arado, tracionado por uma junta de bois.

O tempo tirou-lhe a mãe e o pai, mas deu-lhe maturidade e trouxe Ana, com quem casou e teve um filho. Decidido a replicar no menino o que havia vivido, logo começou a dar-lhe tarefas e forçá-lo a ajudar nas atividades do sítio. Etelvino, até então, desconhecia a tenacidade do temperamento da esposa, que o contrariou terminantemente e permitiu liberdade ao filho para viver intensamente as brincadeiras e aventuras de infância.

Foi ela quem levou Fernando à escola e, terminada a educação regular, incentivou-o a chegar à faculdade. Para isso, precisava mudar para a cidade e morar na casa da tia Julia, irmã da mãe. Na despedida, o jovem ouviu, pela enésima vez, o conselho soturno do pai: “Não mostre os dentes à vida, senão ela vem e te morde”.

Apesar de nunca traduzir expressamente, o homem sentia um misto de inveja e orgulho das oportunidades que o filho tinha, o que ficava claro sempre que o recebia durante as férias da faculdade. Ficava calado ouvindo as coisas que o rapaz narrava a respeito do curso de agronomia e limitava-se a pequenos comentários, apenas para manter o diálogo.

Numa dessas visitas, Fernando trouxe um rolo de plástico transparente. Juntou algumas varas de eucalipto e fez a armação para uma estufa, onde plantou alface, brócolis, couve e outras hortaliças. Como era de se esperar, o pai torceu o nariz, avesso que era a inovações. Entretanto, quando viu as vantagens de ter colheita garantida, até mesmo nos meses de inverno, reconheceu a iniciativa do filho e, mesmo contido, como era de costume, confidenciou a Ana o quanto a estufa agregava à produção.

Dois anos depois, o filho estava novamente em casa. Desta vez veio com o convite para a formatura e trouxe a seu lado uma moça, recém-formada em veterinária e com uma leve saliência no abdome, prenunciando a chegada de uma criança. Além do neto, o jovem casal revelou a pretensão de construir uma casa no sítio e ali se estabelecer.

Ana não conteve as lágrimas de felicidade ante a expectativa da chegada do neto. Abraçou o filho e a nora e ouviu atenta a todos os detalhes do que planejavam. A moça manifestou interesse em praticar sua formação cuidando dos animais enquanto Fernando aplicaria no sítio tudo o que a universidade havia ensinado.

Como era de se esperar, Etelvino se manteve em silêncio, vendo e ouvindo tudo sem dar opinião. De repente, levantou-se da cadeira onde estava sentado, saiu da casa e foi até o pasto, onde atrelou os bois ao arado e foi até o cercado, preparar a área destinada ao plantio de milho.

- Uma criança! Era só o que me faltava! Moleque irresponsável!

Olhou o campo à sua frente. O mês de agosto ia pela metade e o inverno agonizava, evidenciando sinais de que em breve cederia espaço à primavera, cheia de vida, cores e perfumes. A luz do sol da tarde iluminou-lhe a face e, por uma fração de segundo, as comissuras labiais se ergueram em sorriso inesperado. Deu de ombros e sacudiu a cabeça, confirmando a discreta felicidade daquele momento.

Cravou a folha do arado no chão, gritou com os bois e iniciou a marcha, rasgando a terra para preparar uma nova semeadura.

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Inspiração

A partir do chavão tradicional que diz que homem não chora, criei um personagem sisudo, criado nas regras rígidas da zona rural, trabalhando desde a infância e forçado a reprimir seus sentimentos.

Sobre a obra

Usei a narrativa em terceira pessoa, situando o cenário rural, onde fui criado e registrando atividades corriqueiras, mas nem por isso leves, de um sítio: alimentar animais, arar a terra, semear e colher e suportar as agruras do tempo, seja inverno ou verão.

Sobre o autor

Sou fronteiriço, neto de uruguaios e brasileiros, falo espanhol com a mesma fluência que me comunico em português e fui fortemente influenciado pela música e pelas poesias uruguaias, especialmente pelos blocos de murgas e canbombes que animam o carnaval no país vizinho.

Autor(a): HELIO DA SILVA DOS SANTOS (Andarilho da fronteira)

APCEF/RS