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A Moléstia e o Fim do Outono
A Moléstia e o Fim do Outono
Eu não era nascido para lembrar de como aqueles duros e antigos tempos moldaram a humanidade como conhecemos hoje, mas minha falecida avó não se cansava de contar as histórias daquela época e de como as vivências transformaram as pessoas que ela conhecia. Essas histórias eram sempre tão densas e cheias de detalhes que ela parecia estar lendo um livro mesmo sem tê-lo nas mãos. Inclusive, a liberdade dessas mãos eram parte da graça, pois as gesticulava quase como regente de uma orquestra sinfônica. Lembro dos movimentos firmes que contavam sobre uma doença que desnutriu o coração de muita gente; e posso ouvi-la triste falando da "mallatia", palavra que significa “moléstia” em uma simples tradução do dialeto antigo.
Meus avós e seus dez filhos moravam no interior de uma cidade corrompida pelo poder. A extração mineral enriquecia grandes feitores ao mesmo tempo que destruía pouco a pouco a vegetação e transformava os rios em um verdadeiro pesadelo ecológico. Não se sabe ao certo como a moléstia surgiu, mas muitos supersticiosos acreditavam que a própria Natureza havia se revoltado e decidido por si só dar cabo naquela degradante situação. Particularmente não acho tão absurda essa ideia; embora talvez um pouco de mito tenha sido criado, há muita verdade nessa passagem. O que se sabe de mais científico é que a água teria sido o vetor de transmissão e que nunca foi encontrada uma cura, embora algumas pessoas afirmem ter passado pela doença sem quaisquer sequelas.
Tudo começava com um enjoo que era facilmente confundido com uma constipação ou então, se fosse mulher, gravidez. Com o passar dos dias o vivente mudava aos poucos os traços da própria personalidade. Se era calmo, facilmente se irritava. Se era gentil, tornava-se mesquinho. Muitos confundiam a tal moléstia com uma demência, tamanho absurdo que provocava na mudança de comportamento do afetado. Houve um caso bastante famoso da freira que cuidava da igreja. Ela decidiu repentinamente mandar todos embora em pleno horário de missa, inclusive o padre, e depois disso abandonou o celibato. Não durou mais que duas semanas e morreu no próprio leito. É possível encontrar sua foto em notícias do jornal da época validando o caso, e eu mesmo já me deparei com essa história em recortes arquivados na Biblioteca Pública. Minha avó costumava dizer que ninguém fazia nada para ajudar até o dia em que o prefeito foi atingido pela praga. Então mandaram vir um figurão a quem ela chamava de “Doutor Mallatia”.
O nome dele na realidade era Abílio Castro. Havia se formado em medicina no Rio de Janeiro e trabalhou por lá com as doenças típicas daquela época, mas jamais havia estudado sobre a mallatia. Quando chegou à pequena cidade, mal sabia o que fazer. "Certamente é uma doença de outro mundo" afirmava diante das impossibilidades de tratamento. E disse o mesmo para a família de Dona Lucia, vizinha de minha avó, em um dia nebuloso do último terço de Outono. Aquela senhora tinha cinco filhos, todos morando com ela. A doença já se avançava em estágios constrangedores e o exame do Doutor havia constatado que seu coração havia reduzido de tamanho. “O sangue não está chegando ao cérebro e essa isquemia certamente é o que está provocando distúrbios em Dona Lúcia. Como ainda não encontramos remédio, tratamento ou coisa que o valha, infelizmente assim que a última folha de árvore cair, ela estará morta.”
Ao ouvir a sentença que daria a ela menos de um mês de vida, Dona Lúcia retirou-se da sala aonde a família toda estava reunida e foi ter suas reflexões junto às plantas no jardim. Os filhos, mudos pela situação, a observaram através da enorme fenestra que permitia a luz do Sol brilhar no interior da velha casa; entretanto, naquele dia, a sala toldava-se em perene escuridão. Dona Lucia desandava a conversar com as flores enquanto chorava e sorria; e logo alguém se atentou: “Por certo já está louca!”. Então seguiram suas vidas com a certeza de que nada mais poderia ser feito. A filha menor, Augusta, foi a única a ficar na janela, visto que não havia função imediata na lida da roça com seus cinco anos de idade. O mais velho tinha seus afazeres e seguia consertando e preparando as estruturas da casa e do sítio, enquanto as duas filhas do meio cuidavam da plantação e dos animais, respectivamente. O filho mais novo tratava da logística da fazenda e amontoava papeis em forma de registros, ao passo que a pequena Augusta ainda não encontrava par nesse mundo e mesmo entendendo o sentido daquilo tudo, parecia compreender algo para além daquelas atividades.
Certa noite Dona Lucia esqueceu de fazer a janta deixando todos de estômago vazio, o que levou a família a uma discussão quase interminável. Em meio a objetos lançados à parede e tamanho desentendimento, Augusta fugiu daquela situação e só foi encontrada quando toda a polêmica finalmente chegou ao fim. Ela estava no jardim com um pote de cola na mão, catando as folhas caídas de um velho plátano que a essa altura do Outono encontrava-se quase todo desfolhado. Sua mãozinha entrava inteira no pote e com apenas um mergulho ela embebedava com cola cada folha coletada e as prendia no galho mais baixo, o único ao alcance do seu tamanho. Não era um movimento desesperador, mas era apressado e infligiu grande comoção aos seus irmãos, que prontamente passaram a ajudar a pequena.
Logo os vizinhos mais próximos, inclusive minha avó, colocaram-se a praticar o exercício que o padre chamou, na sua homilia do Domingo, de “Fé no Senhor”. A reza foi tão grande que aos poucos a comunidade toda passou a visitar a casa de Dona Lúcia para também colar ao menos uma das caídas folhas no velho plátano. E em questão de poucos dias o Doutor Mallatia havia finalmente encontrado vestígios de uma possível cura ao constatar que o coração de Dona Lúcia aparentemente não estava mais diminuindo, embora vários dos demais sintomas continuassem a se manifestar. Mais tarde, na conclusão futura dessa história, minha avó contava que o que havia realmente dado sobrevida a sua vizinha foi a chegada de um sentimento novo para eles: a Esperança.
Com o passar dos dias, o cenário ao redor do plátano foi ficando esquisito. Havia baldes espalhados e várias escadas escoradas que davam acesso aos galhos mais altos. A pressa de uns e outros em demonstrar de forma aparente o seu auxílio se traduzia em folhas mal coladas e uma total desordem e desequilíbrio visual. Minha avó contava que a última aparição pública do prefeito havia sido captada por um fotógrafo embaixo daquela árvore e que o grau de loucura o fez colar as folhas pelo corpo todo alegando ser uma samambaia. Infelizmente jamais encontrei esse registro. Tudo aquilo definitivamente não era natural, mas isso só foi compreendido quando fortes rajadas de vento chegaram como prelúdio do Inverno e fizeram cair não apenas as folhas coladas, mas também todas as demais folhas que ainda sobravam do derradeiro Outono.
A pequena Augusta caiu em prantos ao ver tamanho infortúnio, mas seu bom gesto foi para sempre lembrado pelo povo daquela localidade. “A ponte humana para Amor se chama Augusta” noticiou a rádio da cidade ao fazer uma matéria sobre o assunto. Dona Lúcia infelizmente não durou muito mais que alguns dias e ainda lúcida veio a falecer no primeiro dia de Inverno, como havia augurado o médico carioca. Curiosamente a doença que levou uma centena de pessoas foi naturalmente se extinguindo à medida que a extração mineral mudava de curso, levando o assolo da exploração para outro local e com isso também as maiores divisas que mantinham a cidade. Assim, o doutor percebeu que não tinha mais lugar naquele local e partiu de volta ao Rio.
Quando mais velho, voltei para visitar aquela cidadezinha e quis ver a antiga árvore da qual minha avó tanto falava, porém o terreno da casa de Dona Lucia estava praticamente todo vazio. Alguns vizinhos me contaram que aquela árvore havia caído junto ao Inverno daquele fatídico ano, outros diziam que toda aquela história não passava de uma grande lenda. Eu fico com as palavras sábias de minha avó, que no alto de seus mais de noventa anos ainda repetia sem errar as mesmas frases: “A vida é feita de ciclos e os ciclos terminam assim como o frio do Inverno sempre vem. E a Esperança está no coração de quem não quer deixar as folhas caírem, mas a verdade é que elas cairão, serão adubo, brotarão sementes, e crescerão plantas e folhas novamente.”
Fim
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Inspiração
Outono é a estação do ano com a qual mais me identifico e mais tenho buscado compreender o seu ciclo. Muitos autores se inspiraram nesse período para expor suas reflexões e plasmarem suas ideias; da mesma forma também resolvi aventurar-me através de um conto.
Sobre a obra
O conto fala sobre a moléstia que nasce no coração das pessoas através dos egoísmos humanos e só poderá ser vencida quando todos compreenderem e viverem de acordo às Leis que regem a Natureza. Com o Outono não é diferente, faz-se necessário compreendê-lo para passar por esse ciclo de forma honrosa com a Esperança de que a Primavera logo vem.
Sobre o autor
Filósofo por identificação, tenho dedicado parte da vida aos estudos da humanidade e compreensão das leis da Natureza através de vivências humanas. Tenho entendido a escrita como uma forma de eduzir ideias e reflexões muitas vezes bagunçadas dentro da mente; e que enfim podem se materializar através de contos, crônicas, poemas e roteiros.
Autor(a): LUIZ GUSTAVO CITTADIN (Gustavo Cittadin)
APCEF/SC
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