UMA VISITA (IN)ESPERADA

UMA VISITA (IN)ESPERADA

A sobreposição dos dedos nas teclas do piano exigia uma combinação complexa. O trêmulo movimento de suas mãos contrastava com a inércia do instrumento à sua frente. Assim, ele distribuía seus dedos nas teclas, de modo que, ao obter determinado acorde e sequência de notas da melodia, essas fluíssem com a maior naturalidade possível. Em seguida, a análise de outro compasso. Mais e mais notas. A dificuldade era intensa na primeira leitura da partitura à sua frente. E, talvez por alguns pensamentos invadirem os entremeios do aprendizado, sua concentração não era total. Via sua imagem solitária naquele apartamento se refletir no tampo do instrumento onde também residia uma poeira, resultado da monotonia dos seus dias. Mais um motivo para dispersão. Via, naquele desenho tosco e embaçado, sua reta final. Seria assim o fim? Restaria algo mais para fazer? Será que o seu maior mandatário, o tempo, ainda permitiria isso? O que mais, além deste elemento implacável mensurado pelos calendários e ponteiros do relógio, poderia impedir seus intentos?
Cada compasso tinha uma característica própria. Comparava-os com sua vida. Alguns se repetiam, mas no contexto tinham significados diferentes. Igualava aquele segmento difícil com sua infância. O outro, na sequência, fluía quase que espontaneamente, como sua juventude. Já não era mais um virtuose, mas, de qualquer forma, nutria ainda um gosto profundo pela música e pela arte de maneira geral. Uma pintura de Van Gogh ou Monet podem ser apreciadas sem sequer termos o conhecimento da maneira de segurar a paleta, concluía.
Agora já não podia mais exigir muito da vida. Ela havia oferecido muitos desafios, e o sabor de algumas vitórias o fazia levantar levemente as sobrancelhas, mostrando um grau de satisfação e, em contrapartida, também alguns momentos de arrependimento em sua caminhada, sendo seus olhos molhados uma prova circunstancial, mas incontestável desse sentimento. Ao lado do piano, uma janela. Mais um motivo para distração e desvio do seu objetivo. Via as luzes lá fora, que piscavam na noite e competiam entre si para chamar a atenção do observador.
Bastava uma batida em sua porta, um grito na rua ou uma chamada em seu telefone, para entrar em pânico. Mas o que realmente o preocupou naquela noite foi o interfone. Ela perguntou claramente por seu nome. Ele confirmou. E o silêncio avassalador que se seguiu foi motivo para uma inquietude sem igual. Tinha plena consciência de que um dia ela lhe procuraria. O Efeito Borboleta se manifestando. Melhor seria se o inseto batesse as asas a favor do vento…
Afastou lentamente o banco do piano, levantou-se e foi em direção à cozinha, com a intenção de encher novamente sua taça. Sentiu uma leve tontura. Sabia que não dormiria naquela noite por motivos óbvios, por isso reconsiderou sua atitude. Não beberia mais. Precisava manter o máximo possível do que ainda restava de sua lucidez e sobriedade. Estranho — enquanto sóbrio, um desejo de embriagar-se; quando ébrio, o desejo de sobriedade. Divagar nos antagonismos era um artifício que costumava utilizar nesses momentos. Auge e decadência seguem rumo à solidão. Um beijo na face pode traduzir amor, ou traição, elucubrava.
Voltou ao instrumento com o plano de se exaurir ali. Iria se empanturrar de notas e, em seguida, a fadiga o envolveria. O cansaço tomaria conta de seu corpo e, consequentemente, se jogaria na cama. Assim que os fantasmas de suas lembranças começassem a assombrá-lo, ele já estaria anestesiado e não sentiria dor alguma. O sono profundo seria uma solução paliativa para sua condição.
A lembrança do silêncio que se seguiu era mais preocupante que a voz grave indagando por seu nome no interfone.
O auge já lhe pertenceu, porém, quando proprietário desse bem, desdenhou outros itens que considerava menos importantes. A escassez de lembranças, como um simples passeio no parque de mãos dadas, sentir um cheirinho de mato ou uma simples carícia, não faziam parte do acervo de suas memórias. Mas bem lembrava de suas performances nos grandes palcos, afinal “O Voo do Besouro, Liebestraum, La Campanella, Clair de Lune” eram obras que raros músicos executavam. Era o pianista mais requisitado do país. Rememorava seu brilho e os aplausos recebidos, ao mesmo tempo questionava-se se os presentes ainda lembravam dele. E assim vagueava pelos dilemas antagônicos da vida. As noites intermináveis onde o ébano das teclas servia de travesseiro, foram a moeda de troca para que despontasse o magnífico profissional que era. Agora, se perdoaria pela sua ausência no lar? Longas eram suas noites que contrastavam com a brevidade com que passou sua vida. Ah, de novo antagonismos! A alegria em ouvir e ver os calorosos aplausos e sua imagem estampada nos jornais e revistas conferindo notoriedade às suas brilhantes execuções eram motivos de imensa alegria e mola propulsora para mais e mais apresentações. Mas as ausências insistiam, como uma nota repetida nas canções, causando um desconforto e, com o passar do tempo, transformou-se em dor.
Via no público presente suas amizades, mimetizadas. Tão logo terminava o espetáculo, a solidão vinha avassaladora. Pisou no palco de muitos países, mas seus olhos não visualizaram os mais lindos lugares do mundo. Ah, mas lembrava do aroma dos pratos e vinhos finos que provara em suas turnês, mas agora provava um gosto diferente em sua boca.
Precisava ir ao banheiro. A incômoda tontura lhe acompanhou. Ainda tentou escovar os dentes, mas a coordenação havia fugido de suas mãos. Suas pernas ainda quentes pela urina que escorreu acidentalmente o levaram até a cama. Os membros cambaleantes pareciam não pertencer ao seu dono. O leito acolheu seu corpo como quem abraça um filho que retorna após uma longa jornada.
Agora ouvia perfeitamente aquela voz. Sentia sua aproximação. Assim, sorrateiramente, no meio da noite, ela veio lhe visitar. E tudo foi se apagando aos poucos...



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Inspiração

A vida e o tempo sempre são assuntos que vem à tona. Momentos introspectivos nos fazem compreender aos poucos o sentido da vida.

Sobre a obra

A criação de um personagem que contrasta o auge de sua existência com a solidão e sua reta final. Um conto tem a missão de, em poucas linhas, deixar o leitor atento e surpreender no final.

Sobre o autor

Paixão pela música e literatura. Contabilizei algumas premiações como o conto A Mata der Marta e e o livro recém publicado, vencedor do concurso Lei do Livro em Santa Maria,
"O Artefato dos Crimes".

Autor(a): ILBERTO LUIS TRENTIN (ILBERTO TRENTIN)

APCEF/RS