Viagens de ônibus

Viagens de ônibus
Deixamos de fazer certas coisas sem a menor cerimônia. Atividades que fizeram parte
do nosso cotidiano, que possibilitaram experiências significativas, são substituídas
por outras não tão dignas de reverência.
Por muito tempo andar de ônibus foi regra em minhas viagens. Curtas ou longas. A
mais longa até São Paulo. As mais curtas, diversas, quando era o ônibus errado. O fato
é que viajar de ônibus ditou por muito tempo o ritmo de minhas idas e vindas.
Acredito que mais idas. Lembro-me de diversas vezes ter voltado a pé . Andar a pé
também é muito bom, mas o destaque aqui é outro.
Em viagens de ônibus reencontrei tanta gente. Namorei. Mais conversei. Sempre fui
mais de conversa. Reconheço que não fui marcha lenta, fui marcha ré. Nos ônibus
olhei muito para fora. Mais para fora que para dentro. Movido pela timidez, buscava
lá fora a segurança do contato efêmero, em movimento. Nunca se sabe o que passou
de fato. Fingi muitas vezes que dormia. Às vezes para não ceder o lugar - Deus me
perdoe - às vezes para não dialogar com quem nem sempre embarcava no ônibus.
Li demais. É mentira quando dizem que a sua retina sai do lugar. Só vai dar um pouco
de dor de cabeça, mas passa com o tempo. Vale a pena. Ler é bom, em qualquer lugar.
Chorar ? Chorei pouco. Só indico abaixar a cabeça e fechar a janela. O vento seca as
lágrimas. Chorar sem sentir as lágrimas no rosto não tem graça nenhuma. É como
beber água gelada com açúcar. Descobri um paradoxo. Queremos que o ônibus pare
em todos os pontos quando estamos do lado de fora e que não pare em nenhum
quando estamos do lado de dentro. Fui assolado diversas vezes pela mesma dúvida.
Sento do lado da gata e corro o risco de ser confundido por um galanteador, ou sento
do lado do rapaz, evitando a primeira desconfiança e gerando outra? Vocês sabem
qual...
Hoje, andando de carro, após ligar o rádio lembrei de uma saudosa viagem de ônibus.
Do meu lado uma fiel companheira nos deslocamentos urbanos: minha amada Tia
Sônia. Naquela ocasião o rádio do ônibus estava sintonizado, se não me engano, num
programa estilo "Good Times". Uma gostosa balada desafiava as leis da física no
ambiente barulhento e se destacava para os nossos ouvidos. Meus e da minha tia,
posso garantir. Percebi que a música era estrangeira. Minha tia parecia cantarolar com
um indisfarçável sorriso no rosto. Desde então acredito que a música transcende o
campo das mensagens compreendidas. Música é sobretudo sensação. Sentimento.
Profundo, né? Fruto de uma viagem de ônibus.
Deixa eu parar por aqui, antes que eu passe do ponto.

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Inspiração

Este texto tem mais de 10 anos. Época de um jovem de menos de 30 anos, que transitava pelo mundo urbano, em viagens de ônibus que não raro duravam mais de 2 horas. Hoje acredito que a inspiração, mesmo que não consciente, foi querer tirar proveito destas horas vividas. Equivocadamente consideradas estéreis.

Sobre a obra

Na minha escrita não há técnica. Não há ensaio. Não há treino. Nunca houve. Eu escrevo como um garoto que joga o mau futebol nos campos de terra batida. Ele chuta e erra gol. Ele tenta driblar e erra a bola. Aí, no próximo jogo, ele lembra do fracasso passado e tenta fazer diferente. Eu escrevo da mesma forma que vivo.

Sobre o autor

Meu nome é Luiz Eduardo Barros dos Santos. Tenho 39 anos. Sou sagitariano, de 14 de dezembro, e não sei o que isso quer dizer. Gosto de música, cinema e livros. Apesar de não expressar esse gosto com regularidade. Sou morador da Baixada Fluminense.

Autor(a): LUIZ EDUARDO BARROS DOS SANTOS (Luiz Eduardo Barros )

APCEF/RJ