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Se acaba, mundo
Se acaba, mundo
Bento andava desengonçado, como um morto-vivo. Pé descalço em asfalto quente desumaniza a pessoa. Zilma teve sorte: estava de japonesa na hora da hecatom-be. Passou feito bala por Bento vambora vambora corre diacho. Bento, sentado sobre o rapa-coco, quenga na mão, trabalhava sem calçados porque era mais confortável. A posição de rapar coco mata as costas dum. Olhou pra trás e desembestou. Jogou a quenga no quengo dum aloprado e correu com o rapa-coco junto ao peito. Após despis-tarem as aberrações, não viram vivalma. Ali parece um bom abrigo, apontou Bento. A bilheteria estava abandonada. Bateram no vidro da entrada principal. Aquilo soou co-mo um berrante do inferno conduzindo um rebanho de aloprados teatro afora. Zilma correu em disparada. Bento capengava, apontando o rapa-coco para rasgar quem se aproximasse. Viu Zilma escalar a Coluna da Hora e imitou-a. O rebanho apontava as mãos para cima, como crianças esperando bambulim. Meus Deus, isso não faz sentido algum, lamentou Bento. Um tanto de gente frequentando teatro!
Papocado de pedra numa porta de vidro atraiu o rebanho. Lá se vão os alopra-dos se rasgando loja adentro. Bento enterrou o pescoço. Zilma benzeu a legião Jesus toma de conta. Viram um cabra véi de avental se abanando com as duas mãos. Desce-ram a Coluna da Hora. O cabra véi puxou pedra e baladeira do avental. Fez mira mor-dendo a língua. Bento balançou os braços homem por Deus num faça uma desgraça dessa. Ele queimou os pés na pista, por isso tá andando igual aos abestalhados, Zilma explicou. Pendendo prum lado, Bento apontou o outro pé com o rapa-coco: torci o mo-cotó na fuga, ó. Cabra véi nojento nem pra se compadecer, só correu prum carro cha-mando bora bora sair daqui voado. Bento na frente, a careta de quem chupou limão. Zilma prostrada no banco de trás: não fossem esses encarniçados do cão e a gente pe-gava um celular na loja, tem que ter explicação pra esse diacho de fim de mundo. Va-lia o trabalho não, dona menina, tá sem sinal de rede e a internet foi pro beleléu, misté-rio medonho isso tudo, esclareceu o cabra véi. Quero é saber que demônio inventou um apocalipse desse, lamentou Bento. Mal o povo se alopra e já cai a área de serviço! O cabra véi coçou o queixo: sei não, seu menino, quem garante não foi mal cair a área de serviço e o povo se aloprar?
Bento desenforcou o mocotó. Até parou de sugar vento com os dentes trincados ai que esse rapa-coco veio de encomenda com ripa resistente pegue na madeireira de Amâncio e isso e aquilo blá-blá-blá. Só porque o cabra véi, olhos estufados, disse que não via um desse desde os tempos do ronca. O bicho era invocado, mestre-cuca diplo-mado no estrangeiro. Usava aquele chapelão e tudo. Cozinha de cruzeiro não é moleza. Precisava de mistura para seu risoto de seriguela veganismo é a da vez, seu menino, esses aloprados tão por fora. Zilma cortou aquela pabulagem toda tu tem plano ou tá dirigindo no rumo das ventas? Mal tinha virado uma dose da branquinha na venda e um rebanho desses aloprados veio de arrastão, lamentou o cabra véi. Correu com uma seriguela na boca, a saca ficou no pé do balcão. Chegasse de mãos vazias no navio se-ria choradeira grande. Todo mundo só falava do risoto tem churrasqueiro que come pedindo bença. Bento lambeu os beiços capaz de comer carrada desse bicho tamanha fome. Sei não, do jeito que tá, navio aí deve ter aloprado de ruma voando pela sacada, comentou Zilma. Voa não, dona menina, tem nem o pê do perigo. Cabine com sacada é coisa pra estribado, e estribado não se alopra nunca, no máximo dá uns chiliques, espe-cialmente se num tem o risoto de seriguela no menu. Zilma clamou aos céus pois ho-mem dê meia volta e vamo buscar essa desgrama. Será que a garrafa da branquinha ficou por lá?, animou-se Bento. Cabra véi girou o carro duma vez que chega levantou dois pneus: tomara Deus, seu menino. A bicha era da boa!
Bento com vista cravada na avenida cabra véi foi antes de tudo um guerreiro. Zilma olhava o teto do carro, peito arfando escapamo nas últimas. Viu cesto de coco na venda e quase bota bofes pra fora no carregamento. Levou lapada do cabra véi larga isso aí e me ajuda com as seriguelas. Zilma bufou ao levantar a saca por baixo pra jo-gar no porta-malas. Nem viu aloprado se atrepar na cacunda do cabra véi, avali Bento pular no pé menos ruim e dar com rapa-coco na goela do desalmado vai pro inferno cão. Mas o coitado do cabra véi estrebuchava, tinha jeito não. Estendeu a mão ensan-guentada a Bento garanta o almoço desse povo e sussurrou em seu ouvido como fizesse oração. Bento assumiu o volante inda bem que o câmbio é automático. Tomou rumo do Mucuripe. Zilma no passageiro, agora como quem assiste jogo de pingue-pongue num acredito que estamos vivendo isso. E meu rapa-coco?, lamentou Bento. Cheio de gos-ma de aloprado que nem escaldo salva!
Chegaram no Mucuripe, motor do carro cortando o silêncio estranho. Surgiu a dúvida de como fariam pra chamar atenção do navio. Sabiam nem qual o navio certo, pra começar a conversa. Uma ruma atracada. Procura um desses mais bonitinho, dos que leva gente, Zilma ensinou. Apuravam as vistas, mas não tinha um pé de pessoa naqueles barcos. Nem de aloprados graças a Deus. Ó aquele barcão ali, anda pra lá ó, apontou Zilma. Esse tem cara de chique, deve ser o do cabra véi. Um zé ruela viu o carro se aproximar e gritou lá de cima chefe chefe chefe o chefe voltou. Zilma bufou de ódio esse filho da puta tem que parar de berrar. Vai atrair os aloprados.
De onde tu tirou isso?
Até parece. Tu nunca viu filme de morto-vivo não?
Já. Vários. É só o que tem.
Então. Tudo que é barulho atrai essas pragas. Isso é o básico.
E de onde tu tirou que esses aloprados são mortos-vivos?
E de onde tu tirou tanta burrice? Arriégua Bento. Viu o jeito que atacaram o cabra véi não? Arrancando as toras com os dentes. Creio em Deus Pai.
Nã, mulher, claro que vi. Mas isso de filme é coisa pra inglês ver. Nós tamos vivendo a vida de verdade, aqui em Fortaleza. Manual de filme americano serve pra nós não.
Esse desgraçado precisa calar a boca. Quero correr risco não.
Mas aí tu vai ter que gritar pedindo pra ele parar de gritar. Sei se vai funcionar não.
Quando aproximaram o carro, Zilma pôs a cabeça pra fora da janela. Só então o zé ruela falou em tom normal quem são vocês?
Zilma explicou tim-tim por tim-tim. Desde os aloprados atrapalhando a produ-ção das cocadas até a tragédia com o cabra véi. O zé ruela moveu o queixo despencado e berrou estão me dizendo que o chefe Aioli Ferreiro está morto?
Sim. A gente sente muito. Ele salvou nossas vidas.
A saca de seriguela está aí?
Sim. Conseguimos botar no carro antes do ataque.
Mesmo que nada. Quem vai cozinhar o famoso risoto de seriguela? Vocês têm ideia do tamanho da catástrofe? Quase todo mundo que está no lounge prime vip pagou este cruzeiro com o intuito exclusivo de ter uma experiência gastronômica. E degustar esta iguaria, criada e executada com maestria pelo nosso chefe Aioli Ferreiro, é o pon-to alto. Aqui é o único lugar da galáxia que serve esse prato. Vocês têm ideia do tama-nho da hecatombe?
A gente trouxe coco também, Zilma falou como pedisse perdão. Podemos fazer cocada, é nossa especialidade.
Tenho certeza de que a senhora não é idiota e entendeu o tamanho da gravidade do que acabei de falar. Não vou repetir.
Seu Doutor, perdoe a gente, disse Bento. O chefe não morreu por culpa nossa. Mas ele me passou a receita do risoto antes de morrer. Tá tudo aqui na cachola. Parece simples. Deixe a gente embarcar que vamos cuidar disso pro senhor.
O zé ruela pôs mão no queixo e olhou pro céu. Por fim, disse: preciso ver as se-riguelas primeiro. Jogou uma corda e pediu que o casal amarrasse a saca. Bento pôs força danada nesse nó que sua mão escorregou e bateu sem querer no rapa-coco que mantinha preso entre as pernas. Mas foi coisa de segundo: assim como o zé ruela, ele olhou fixo para o céu azul que tá danado nem parece o fim do mundo. Os cortes em sua mão apodreceram instantâneo. Cravou unhas nas costelas de Zilma e deu-lhe um chu-pão no pescoço como há muito não dava. O zé ruela, meio desentendido meio espanta-do, puxou a saca com força. Ela subiu alguns metros como galgasse degraus invisíveis até escorrer do nó mal dado por Bento. Bateu no chão e soterrou o casal, minando de vez as chances do lounge prime vip degustar o exclusivíssimo risoto de seriguela.
Daniel Mendes Barreto
Fortaleza / CE
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Inspiração
Este conto surgiu a partir da provocação do professor Odorico Leal em sala de aula. Após leituras de trechos de obras que abordam temas apocalípticos, ele nos sugeriu que escrevêssemos a nossa própria.
Sobre a obra
É um texto apocalíptico com toques de comédia. Conciso, com falas incorporadas ao corpo narrativo e linguagem regional. A intenção foi ser galhofeiro, fugindo do tom soturno que perpassa a maioria desse tipo de texto.
Sobre o autor
Sou Daniel Mendes Barreto, tenho 38 anos. Natural de Fortaleza, Ceará. Formado em Administração de Empresas pela UECE. Pós-graduado em Escrita e Criação pela Unifor. Trabalho na Caixa desde 2011.
Autor(a): DANIEL MENDES BARRETO (Daniel Mendes Barreto)
APCEF/CE
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