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Corpo
Corpo
O sacerdote ia sussurrar uma oração e logo em seguida aqueles comes e bebes seriam, de fato, corpo e sangue de Cristo. O acólito, ao lado, não desgrudou olhos do altar. Nada viu acontecer e tampouco discerniu qualquer palavra da falação muda do padre. Fato é que Nosso Senhor já estava ali descansando sobre a patena. Era a transubstanciação.
Durante o recolhimento das oferendas, o padre fez lá seu ritual, sempre esfarelando os dedos acima do cálice não podemos correr o risco de que partículas do corpo de Cristo se percam ao vento. Mais se aproxima o momento da comunhão, mais o acólito se inquieta. Tenho missão pra você na missa de hoje lhe dissera o padre na sacristia, o ministério de música já entoando o canto de entrada. Explicou que denúncias dão conta de que tem alguém na comunidade profanando o corpo de Cristo.
Filho, eu olho no mais profundo do olho do pecador quando lhe dou a eucaristia. Mas logo em seguida preciso baixar o rosto ao cibório em busca da hóstia do próximo. Você será meus olhos a observar se o irmão que acabou de receber a hóstia consagrada de fato a engoliu.
E se não tiver engolido?
Siga-o e obrigue-o a engolir. Não podemos deixar o demônio usar nossos irmãos para atentar contra Nosso Senhor.
Após repetir o texto litúrgico padrão da missa comum, o sacerdote, ainda com cálice e hóstia erguidos, clamou isto não é prêmio para os virtuosos mas sim remédio para os miseráveis e convocou a assembleia a comungar. O acólito recebeu em sua boca o corpo de Cristo diretamente das mãos do presidente da celebração. Não conseguiu dizer oração nem nada. Sentia sangue martelando em seu pescoço siga-o obrigue-o siga-o obrigue-o. O inimigo não dá trégua.
O padre desce do altar, mão cobrindo a abertura da âmbula. O acólito o segue, mãos unidas na altura do peito siga-o obrigue-o siga-o obrigue-o. E se seguir um blasfemo e, antes que retorne, apareça outro? O padre disse tem gente, foi, ele disse tem gente profanando o corpo de Cristo e gente pode ser mais de uma pessoa, pode ser a assembleia inteira. O acólito desune as mãos para enxugar suor acumulado na sobrancelha.
Já há uma fila espontânea à espera do corpo de Cristo. O acólito nem pisca, de olho nos dedos e bocas da assembleia. Tem quem comungue ajoelhado. Outros põem a hóstia na língua e esperam que ela se dissolva. Alguns mastigam como um pedaço gorduroso de carne. Um miserável chegou como a maioria, mão esquerda estirada sobre a direita. O padre depositou com cuidado a hóstia na mão do dito. Tinha um bigodinho atrapalhando, mas o acólito suou frio com o que viu: um jogo de prestidigitação, em que o suspeito fingiu pôr a hóstia na boca quando na verdade escondeu-a na mão fechada e deu costas para o altar e agora? siga-o obrigue-o siga-o obrigue-o. O acólito destrambelhado mas quem inventou que a gente tem que andar o tempo todo com as mãos juntas meu Deus? estava à beira de encostar no profanador como é que faço essa abordagem meu Deus? Em sincronia perfeita, o Bigodinho sentou-se na ponta dum banco ao tempo em que o acólito ordenava meu querido ponha na boca já. O do bigode e as pessoas em volta quiseram rir como é a história?
O padre tinha dito: meu filho, se der de cara com o profano, não hesite em hipótese alguma. Seja enérgico. Seja categórico. É a honra de Nosso Senhor Jesus Cristo que está em questão. Ordene que a pessoa ponha a hóstia na boca.
Não estou aqui para piadas. O senhor ponha a hóstia na boca imediatamente.
É o quê, filho? Já foi, faz é tempo. Fiz foi engolir já.
Não queira me fazer de idiota. O senhor a escondeu, que eu vi.
Queridinho, tu tá bem? Estamos no meio da comunhão. Não é hora de algazarra. Volta lá pra ajudar o padre.
O acólito ergueu a voz põe na boca agora. O presidente da assembleia grasnou um não tão violento que sua garganta parecia a trombeta do apocalipse. O Bigodinho estirou um canto de boca e bateu cabeça no ar. O acólito recuou apalermado. A essa altura difícil saber se o que fazia era certo ou errado. Somente quando o padre abandonou a liturgia gritando socorro Deus, o acólito entendeu que a reprimenda não fora para ele. Comungantes e não comungantes fizeram correr burburinho do altar ao pórtico. As senhoras da Legião de Maria com a mão no peito. O ministério de música capengou em algumas notas, mas conseguiu ignorar a farfalhada olhe pra cruz/ esta é a minha grande prova/ ninguém te ama como Eu. O acólito correu ao padre, que, ajoelhado, gritava aos céus tapando o cibório com uma mão perdão Deus perdão Senhor. Depois gritou ao acólito pegue o sanguíneo.
Agora o pobre ajudante havia entendido tudo. Lembrou-se da explicação do sacerdote nas aulas sobre objetos litúrgicos. O sanguíneo é aquele pano que o padre esfrega com força no cálice após a comunhão. É um objeto que jamais sai do altar, a não ser em casos excepcionalíssimos, como quando uma hóstia consagrada cai ao chão, por exemplo.
O acólito traz a toalha especial segurando-a com as duas mãos. Entrega-a ao padre, que a esfrega no chão vazio. Cai na besteira de perguntar o senhor já tinha apanhado a hóstia? O presidente da assembleia não ergueu cabeça nem voz profanação profanação o demônio atentou contra Jesus dentro da casa de Deus.
Mas padre
O clérigo, em cólera, interrompe a assepsia e aponta um ser desprovido de alma comungou.
Seguindo o dedo do padre, só agora o acólito notou a presença faceira de um cão de rua, sentado sobre as patas traseiras. Quando em vez molhava o focinho, olhos remelentos e pidões vidrados na âmbula, que o padre mantinha abraçada ao corpo com uma das mãos, a outra agitando o sanguíneo xô xô.
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Inspiração
Conto escrito a partir de notícia de jornal e da música Se eu quiser falar com Deus, de Gilberto Gil.
Sobre a obra
Um conto curto com toques de comédia. O centro do texto é algo que perpassa a história brasileira em todos os tempos. Igreja e cachorros de rua.
Sobre o autor
Sou Daniel Mendes Barreto, tenho 38 anos. Natural de Fortaleza, Ceará. Formado em Administração de empresas pela UECE. Pós-graduado em Escrita e Criação pela Unifor. Trabalho na Caixa desde 2011.
Autor(a): DANIEL MENDES BARRETO (Daniel Mendes Barreto)
APCEF/CE
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