O HOMEM QUE NÃO QUIS FICAR NO CÉU

O HOMEM QUE NÃO QUIS FICAR NO CÉU


Zé de Baê era uma boa pessoa. Prestativo, solidário, bem humorado e, apesar do pouco estudo, muito curioso e leitor voraz de almanaques de onde tirava os conhecimentos que compartilhava nas mesas de bares e nas rodas de conversa na praça. Uma fala do quase centenário Chico Santino sintetiza bem o sentimento dos seus conterrâneos para com ele:

- O cabra que não gostar de Zé, pode mandar matar que é peste!

Morreu prematuramente. Seu funeral foi um dos mais concorridos e pranteados da cidade, haja vista a simpatia que lhe devotavam e a morte súbita, com pouco mais de trinta anos.

Seguia seu cortejo fúnebre rumo ao cemitério quando, ao passar pela praça onde costumava reunir-se aos amigos para as conversas de boca-de-noite, sem que o caixão se abrisse, saltou ele do seu interior, se pô de pé sobre a tampa e gritou:

- Parem!

O grito ainda ecoava e não havia, sequer, uma pessoa a menos de cem metros do esquife abandonado. Para ser justo, vale registrar que, uma senhora idosa, de cabelos brancos e olhar sereno, manteve-se em seu lugar com a placidez que lhe era peculiar. Tratava-se de dona Sofia. Peço licença ao leitor para uma observação, coisa pessoal: jamais vi uma mulher, nem mesmo entre as jovens, cuja beleza se lhe assemelhasse, mesmo com sua avançada idade.

- Voltem aqui, bando de medrosos! Não sou nenhum um bicho do mato, não! Sou eu, Zé de Baê! – Gritava o morto de cima do caixão, gesticulando para que se aproximassem.

Aos poucos, alguns foram se achegando cuidadosamente. Mas, a parte do grupo composta pelos mais medrosos e corredores já se achava fora do alcance do seu chamado.

- Pelo santo nome de Deus Nosso Jesus Cristo e da santíssima virgem Maria, se quiser reza peça! E se deixou na terra alguma promessa por pagar, diga e siga seu caminho! – Falou dona Minervina, a rezadeira.

- Não, minha senhora. Eu quero é o contrário. Eu quero é ver o padre!

- Mas, Zé, o padre não está aqui. Foi o primeiro que correu e não tem quem pegue! O que você quer com ele, homem de Deus?

- Quero que ele desreze tudo que rezaram por mim. Por causa de tanta reza fui parar no céu e não quero ficar lá!

- Vixi! O sujeito endoidou, depois de morto! Nunca vi uma coisa dessas. Onde já se viu, desrezar?!

- Isso não existe, meu filho. É um sacrilégio. Você deve estar sendo tentado pelo coisa ruim!

- O senhor diz isso porque nunca foi lá! Pois vou contar como é o lugar. – Falou, sentou-se sobre o vidro do caixão, sem quebrá-lo, e iniciou a narrativa:

Chegando lá, ao ter seu meu nome localizado num grande livro por São Pedro, fui introduzido num grande salão. Era uma coisa sem fim e lá estava sentado num trono, sobre um magnífico altar, Deus. De lá Ele olhava para cada um de nós daqui da terra, não importando onde estivéssemos, até no banheiro... Por ter mais de quinhentos quintilhões de anos, seus cabelos eram bancos e longos e sua barba enorme. E por ficar o tempo todo sentado, era meio gorducho. Em torno dele havia uma infinidade de anjos tocando harpas e trombetas, combinação que achei estranha. E não tocavam Bach, Beethoven, não! Tocavam os hinos que conhecemos por aqui.

A agitação do lugar ficava por conta dos santos. Era uma correria grande de um lado pro outro para levar os mais variados pedidos dos daqui para Deus. E havia cada pedido que Deus balançava a cabeça e dizia baixinho:

- Ah, meu Deus!

Cheguei a me perguntar: como assim? E Deus também tem um Deus, ou fala consigo mesmo?

- Zé, tu visse Santo Antônio por lá? – Indagou meio sem jeito uma moça que passara dos trinta sem casar, apesar da forte devoção ao santo.

- Mas ora se vi! Era, de longe, o mais atarefado de todos. Além de carregar aquele menino no braço, corria feito um louco com tantos pedidos. E com o aumento da população e o costume atual de casar, logo se separar e sair procurando outro casamento, podem acreditar: acho que o pobre está à beira de um esgotamento físico e mental.

Além dos anjos e santos, havia pessoas que morreram: reconheci um religioso que morou na minha rua, cuja filha passou quase um mês sem ir à escola, devido aos hematomas causados por ele por ela haver cortado os cabelos. Também vi um que tinha um concorrido programa de rádio e dizia que todos os homens com traços afeminados vão queimar pela eternidade no inferno e, por isso, expulsou de casa um filho que veio a suicidar-se algum tempo depois. Vi muitos religiosos que se aproveitavam imoralmente de crianças e adolescentes e vi pobres que ficaram milionários arrancando dinheiro de outros pobres, em nome de Deus.

Fiquei muito enjoado, mas segui procurando outras pessoas e não encontrei. Não vi o velho Machado de Assis, Ary Barroso, Noel Rosa, Fernando Pessoa... Esses e outros que nem conheci, mas de quem aprendi a gostar lendo suas histórias, escritos ou ouvindo suas músicas.

Enfim, sentindo-me desiludido e oprimido naquele lugar, só vi uma saída: voltar pra cá e pedir para desmancharem as rezas feitas para que eu fosse pra lá. Assim, num descuido de São Pedro, escapei e cá estou. Antes, porém, gostaria de registrar a minha grande admiração por um daqueles santos: São Francisco de Assis. Aquilo é um santo danado de porreta. Nos demais, não prestei atenção. – Concluindo a narrativa, fez longa pausa para descansar finda a qual voltou a se pôr de pé em cima do caixão e gritou:

- Meu povo, cadê o padre? Tragam esse padre aqui, pelo amor de Deus!

- Tá ruim, Zé. O padre foi longe! Não tem quem ache.

- Ô padre danado de frouxo! Pois, vou ficar aqui até ele aparecer.

Dona Sofia, com seu jeito que, naturalmente, induzia a respeitoso silêncio, aproximou-se do finado e falou:

- Meu jovem, não precisa desfazer as rezas feitas pelos que gostam de você e querem o seu bem. Esqueça o lugar onde julga ter ido. Sua alma está confusa e é compreensível que assim esteja pois, durante a sua vida foi bombardeada por inúmeras crenças, muitas vezes, ilógicas e contraditórias que a distanciaram da essência do que É.

- Gostei! Boas palavras, dona Sofia. Mas, e agora, o que faço?

- Siga o seu caminho e prepare-se para encarar o grande tribunal, onde uma implacável juíza lhe fará apenas uma pergunta.

- Já estou deixando de gostar... Quem é essa Juíza, é a virgem Maria? E que pergunta é essa, posso saber?

- Sim. A juíza será a sua consciência e a pergunta será: O que você fez da sua vida? – Falou dona Sofia e, dando por encerrada a conversa, voltou ao seu lugar reverenciada por todos.

Após silenciar e degustar, com um misto de contentamento e surpresa, a fala da nobre senhora, Zé olhou o entorno em tom de despedida e quebrou o silêncio:

- Meninos, toquem o enterro pra frente que o cemitério ainda tá longe! – Falou trazendo de volta o burburinho e, assim como emergiu do caixão, retornou para o seu interior.

O cortejo seguiu adiante.

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Inspiração

O paradoxo gerado por algumas crenças religiosas.

Sobre a obra

Um texto construído a partir de uma linguagem próxima da informalidade, com um viés de humor.

Sobre o autor

Meu gosto pela leitura e escrita remonta à infância. Com um livro de poesias e um de contos publicados, atualmente procuro agregar às minha criações um pouco de reflexão filosófica.

Autor(a): ALDENIR DANTAS DA COSTA (ALDENIR DANTAS)

APCEF/RN


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