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A4 (A QUATRO)
Durante toda infância, como milhões de brasileirinhos, sonhei ser jogador de futebol. Talvez por influência do meu pai, que brilhou na lateral-esquerda da Patativa, o querido Central de Caruaru/PE. Ele, ainda com idade de Juvenil, jogara no profissional e disputou Campeonatos Estaduais. Naqueles idos da década de 60 o futebol ainda era marginalizado. Sem redes sociais e salários vultosos, um caminho torto que meu avô vetou que ele seguisse.
Por falta de intimidade com a pelota, recolhi-me ao lugar comum daqueles que não a tratam devidamente: a defesa. E assim cresci, ciente das limitações que me impediam de ser um camisa 10 e na certeza que não tinha o garbo de um Franco Baresi ou de um Mauro Galvão. Diz-se que esses jogavam de terno, tamanha a classe com a qual desfilavam em campo.
Pelo universo reduzido de candidatos e na base da vontade, consegui jogar em todos os times de colégio e também na faculdade. Daí passei no concurso da Caixa em 2006. Já na “Semana de Integração” me apresentaram a possibilidade de uma previdência privada e a tal da APCEF. Falaram dos “Jogos da Caixa”. Uma espécie de Olimpíadas da empresa. Não vacilei e sem titubear assinei ambas as fichas, com o brilho nos olhos e a nova fagulha no peito de realizar o sonho daquele menino: jogar minha “Copa do Mundo”.
Pela APCEF/RN, tentei trilhar outras posições em campo: volante, centroavante, lateral... Já que ninguém me conhecia e sabia onde eu jogava. O treinador me deu a 4. Nunca o agradeci, mas quando ele me deu aquela camisa e disse que eu levaria mais jeito pra zagueiro, nasceu ali o F4. De gozação, anos depois, assim me autodenominei. Uma brincadeira em alusão a todas as siglas exaltadas: CR7 (Cristiano Ronaldo), R9 (Ronaldo Fenômeno) e R10 (Ronaldinho Gaúcho) – a zaga merecia algum reconhecimento e criei a brincadeira que pegou.
Zagueiro-zagueiro, muita disposição, chute certeiro e potente, raça e aplicação em campo. Se tiver que botar a cabeça para impedir o chute de um atacante, lá estará minha mandíbula. O prazer que um atacante tem ao fazer um gol é o mesmo que sinto quanto salvo uma bola em cima da linha. O êxtase que se sente ao driblar é um pouco menor da satisfação que tenho ao realizar um desarme de bola. Sem os operários e os carregadores de piano não se tem espetáculo!
Minha primeira convocação veio no ano de 2008. A peneira não foi fácil. Ainda não havia a divisão entre Livre e Máster (divisão por idade), então teria que disputar uma das 18 vagas com a “Velha Guarda” e com os demais colegas recém chegados ao escrete Potiguar. Vamos à Capital Federal, Jogos Nacionais em Brasília/DF!
Eu estava pleno: concentração, hotel, uniforme, camisa de delegação, desfile das Associações: estava na Copa do Mundo. Feliz só por fazer parte daquele grupo, independente se eu iria entrar ou não em algum jogo. Na preleção do primeiro jogo, João Ronaldo, capitão e zagueiro do time não havia chegado ainda em Brasília. O pai dele estava hospitalizado e não sabíamos nem se ele iria vir aos Jogos. Minutos antes me chega a notícia: “Faustão, você começa jogando”.
Gelei, isso não estava no script. O então capitão era a referência defensiva do time e lá iria eu formar zaga com Jânio. A estreia seria contra a forte equipe de Minas Gerais.
Minutos antes de iniciar o jogo o capitão chega, mas o treinador mantém o time da preleção! Aquilo não foi um jogo, foi uma batalha épica! O primeiro tempo termina empatado, com um gol de pênalti ao nosso favor. A orientação era clara, seguremos o resultado e amarremos o jogo! Começa o segundo tempo e Jânio é expulso. Nessa hora não havia só eu e João Ronaldo de zagueiros, éramos 7 defensores e um paredão. Minas faz o 2 x 1 e no final do jogo conseguimos o suado empate, com um jogador a menos. 2 x 2!
Toda a delegação potiguar, uníssona, junto a todos os outros espectadores, que imbuídos do espírito de torcer para Davi no confronto com Golias encampam o coro pedindo o final do jogo! No último lance, no apagar das luzes, o nosso goleiro Pacelli arremessa a bola na linha do meio campo. Emerson, o Magro de Aço, domina a bola despropositadamente e conduz em direção ao campo adversário. Ele vacila: não sabe se se desfaz da bola, se recua ou se avança. Na dúvida ele segue conduzindo... rente a linha lateral... se desvencilha do primeiro, do segundo marcador...o terceiro se arma para o carrinho, e o Magro chuta (ou se livra da bola), que cruza macia o campo, numa viagem doce, para morrer no fundo da rede, quase beijando a trave. O gol da virada!
Não me lembro do que se passou até acabar aquele jogo. Quando apitou o árbitro a torcida invadiu o campo e meus companheiros, vários, tinham os olhos marejados. Definitivamente, futebol não é só um jogo. Para se ter uma ideia daquele feito que estávamos protagonizando: há anos o time sequer vencia um único jogo. E o campeão daqueles Jogos Nacionais de 2008? Minas Gerais. Após aquela derrota nenhum time parou a equipe mineira. Nós, sim.
Os anos se passaram e seguimos treinando e jogando. Campanhas pífias, vexatórias e alguns brilhos solitários.
Até que em 2012, nos Jogos Nacionais de Vitória/ES atingimos um novo patamar: time vencedor. Aquele time “saco de pancadas”, motivo de chacota acabava ali. O RN passou a ser respeitado no cenário regional e nacional com uma campanha brilhante, chegando à semifinal e terminando com honroso e inédito 4º lugar.
Chegávamos enfim ao ano 2015: Jogos Regionais em Natal. Sediar um evento daquela grandeza, jogar em nosso quintal, onde treinávamos e conhecíamos cada recanto daquele campo, suas marcações e atalhos, era uma honra e uma grande responsabilidade.
Montamos em 2015 um time forte e tínhamos ao nosso favor o “fator campo”. Seria aquele o ano em que romperíamos a barreira e superaríamos a mágica de Vitória/ES? Sim, chegava o momento do “tigre beber água”, de irmos à forra, de buscar o Ouro que merecíamos.
Com excelente desempenho chegávamos à semifinal contra a temível e imparável Bahia. Os filhos de Caymmi jogavam sobre proteção dos Santos e Orixás e há anos não perdiam. Soberanos, quase soberbos. Mas no nosso quintal, nós quem mandávamos.
A Bahia abre o placar, já no final do segundo tempo. O sonho não acabaria ali. Tínhamos o artilheiro do campeonato, Anderson Luiz, que jogava e inspirava a todos potiguares. Nos minutos finais conseguimos o gol de empate, que nos levou à prorrogação: lançado na ponta esquerda, ele puxou a bola pra dentro da área, deixando o lateral direito no chão e na saudade. Os volantes vieram ávidos e sedentos por canelas, foram cortados com uma finta seca para dentro da área. O goleiro anteviu a bomba, o chute cruzado de perna esquerda. Caiu. Caiu na cilada do craque: vendo o arqueiro deitar-se ao encontro da bola ele ousou cavar, uma cavadinha abusada e autêntica, que encobriu o goleiro e a bola chegou macia no fundo do gol. Explode a torcida! Anderson corre para o alambrado e a massa contagiada, de torcida, família, jogadores e o banco de reserva formaram um só corpo.
Anderson era “O Iluminado”, parafraseando, com o perdão da ousadia, o mestre Nelson Rodrigues, que batizou Amarildo, o herói da Copa de 62 como “O Possesso”, de quem “de seu lábio pendia a baba elástica e bovina dos possessos”. Naquele dia tive a sensação boa de que tudo que ele fizesse daria certo, e a virada passou a ser possível, estava logo ali.
A Bahia faz o segundo gol. Banho de água fria. O final de jogo se aproximava. Naqueles Jogos Regionais eu ainda não havia estreado. O time jogava o fino da bola. Quando levamos o segundo gol, que a equipe precisava do gol de empate a qualquer custo, sabia que não entraria (e aquela altura era mais um torcedor e incentivador, calçado de chuteiras), pois o time precisava de um gol para levar a decisão às penalidades máximas. E ele veio.
Pablo, o nosso calouro, garoto de riso fácil, de velocidade, estava jogando de lateral direito. Relutava e dizia diuturnamente que preferia jogar de atacante, de fato, um craque. Eu o chamava de Cafu, em referência ao Capitão do Penta, lateral e polivalente jogador. Tal qual o xará, Pablo cruzava terrivelmente ruim. Não faltava mais do que três minutos para acabar a partida e o banco da Bahia já pedia o fim de jogo. Pablo arranca pela direita, corta o beque e cruza na medida, para ele, Anderson, o Iluminado, subir alto, parar no ar, juntar o queixo no peito e testar forte para o chão, e fazer a rede, os jogadores, o banco, a torcida e todo um Estado explodir em festa: estávamos no páreo!
O juiz apita o fim de jogo, silêncio e concentração total. Diz-se que o pênalti é tão importante que deveria ser cobrado pelo presidente do clube.
O Professor Manoel Cid (todo jogador chama o técnico de Professor), vem até a mim e pergunta: “Você bate o primeiro?”. Passou tudo pela minha cabeça, numa fração de milésimos: o sonho, a Copa, a centena de treinamentos, meu pai, meus companheiros, herói, vilão. Não titubeei e respondi: bato.
Como disse acima, pouca coisa no futebol faço bem. Talvez a melhor coisa que faça seja bater pênalti. Meu aproveitamento nos treinamentos era quase perfeito. Nosso goleiro titular (o melhor goleiro amador que vi jogar) nunca pegou uma única batida minha. Eu sabia o que tinha que fazer. Pegar a bola, ajeitar o pito, não olhar pro goleiro, dar 4 passos pra trás, mentalizar o que faria (batida de segurança), correr para a bola, apoiar o pé esquerdo rente a pelota e soltar a perna. A batida de segurança era: chute baixo, no canto direito do goleiro, bomba seca – a física, a experiência e a mandinga diz que se você fizer isso e o goleiro não se jogar naquele exato lugar pelo menos 1,2 segundos antes de se tocar a bola o resultado será um só: Gol.
Estávamos onde sonhávamos, faltava muito pouco para chegar à final na manhã do dia seguinte. Uma disputa, cinco chutes para cada um, quem fizesse mais gols faria a festa. Quem perdesse, restaria a dor da derrota.
Eu estava treinado. Confiante. Dava para ouvir tudo em volta (embora não visse nada com clareza): os incentivos, os xingamentos e toda sorte de chamamentos que você imaginar. Ouvia meu nome.
Estava a 4 passos do paraíso. O céu e o inferno. Iniciar com o pé direito! E lá vou, seguindo o script programado. Mas entre eu ajeitar o pito e a bola entrar no gol algo não se sucedeu conforme o previsto. O que? Chutei para fora. A bola saiu mascada e passou ao lado da trave. Não foi gol, começávamos a disputa no prejuízo.
Situação que não reverteu. Final das penalidades, a Bahia nos venceu.
O que dizer nessa hora? O que se espera escutar dos companheiros? Ali, indiretamente, você acaba pondo fim ao sonho de um grupo, faz em vão todas as muitas lesões e desgastes dos companheiros, que estavam destroçados. Todos os gols de um Iluminado viravam estatísticas.
O grupo se reuniu após o jogo. Encaro um a um, falo. A voz embarga, não lembro as exatas palavras, mas a mensagem é de escusas. O que mais doía não era falar aquilo, era ver o semblante dos amigos de time. Ver a lágrima descer frouxa dos olhos de alguns. De ver o nosso intransponível goleiro Sandes, ali, desconsolado. Se meu pênalti entra...seria diferente...o “se” martela e machuca.
Doía também saber que aquilo era o fim, mas ainda não tinha acabado. Haveria, na manhã seguinte, a disputa pelo Bronze. Participar das “Olimpíadas” era um sonho. Disputar a final virou pesadelo. Mas lutar por uma honrosa medalha, de bronze, seria mais do que uma real “honra ao mérito”.
A noite foi longa. A mente não parava e não dormi. Tinha que levantar e calçar as chuteiras para a disputa do Bronze. Lá chegando, a equipe estava em frangalhos. Márcio, zagueiro titular, saiu de ambulância no final da prorrogação – sem condições de jogo. Outra leva também não tinha condições mínimas de jogo. Tive então de jogar, improvisado, de lateral direito.
No primeiro lance do jogo, o ponta esquerda do time do Piauí me dribla com facilidade, e na entrada da área, quase na linha, faço a falta. Quem joga bola, sabe: a primeira bola é a mais importante. Se acerta, ganha confiança e pode se ter um bom jogo. Se erra, complicou. Mas tive a calma de esperar a segunda bola, acertar e desenvolver o meu jogo. Até falta bati e quase faço gol. Vencemos, convictos, por 2 x 0. Gols do Iluminado.
Apita o árbitro o fim de jogo. A ficha caiu: éramos medalhistas dos Jogos FENAE. O bronze estampava nosso peito. Poderia ser dourada, sim. Mas aquilo ainda era muito mais do que imaginei quando assinei aquela ficha lá na Semana de Integração.
De 2008 pra cá, são 10 anos ininterruptos, defendendo com muito orgulho o escrete Potiguar por todo o país.
O esporte imita a vida. Uma batalha diária: ora se perde, ora se ganha, mas sempre se aprende. Como um dia após o outro, um apito nunca acaba o jogo. É só um assobio dizendo que amanhã tem mais. Até que soe o apito final.
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Inspiração
A4 poderia ser o campo/papel no qual o escritor joga, onde demonstra sua técnica. O número 4 me reservou essa crônica e uma alcunha, na qual conto o dia em que estive A QUATRO passos do paraíso e da glória.
Sobre a obra
Escrever "A QUATRO" foi, antes de tudo, uma catarse. Ao fazê-lo, exorcizei fantasmas e encontrei a "paz da bola". Através de uma narrativa e divagações vou construindo um pouco da minha história no time de futebol da APCEF/RN.
Sobre o autor
Sem arte e cultura a vida não teria a mesma graça. Tento contar histórias que gostaria de sentar e ouvir. "Tamo aí na atividade!"
Autor(a): FAUSTO DE ARAUJO NETO ()
APCEF/RN