Talentos

Aniversário

O quarto dia do mês de julho apresentou uma manhã excepcionalmente fria. O vento - conhecido no sul como Minuano - tinha ganas de passar por dentro das roupas, chegar à pele, passar por ela e congelar os ossos.
Na bicicleta, a pilha de jornais ia diminuindo a cada entrega, que havia começado às seis horas. O sol apareceu tarde, sonolento e frio, quase duas horas depois. Desço pela rua do Banco do Brasil, passo pelo colégio, até a praça, lá ficam três exemplares no edifício. Mais duas quadras - mais dois entregues. No edifício grande, ficam oito e por ai vai, o rosário de entregas desfiando-se pouco a pouco, até restar a sobra (sempre sobravam exemplares) que nós vendíamos e ganhávamos uns trocados de comissão. Passo pela padaria, o cheiro de pão novo me chamava, mas as poucas moedas que trazia fizerm-me passar direto. No pensamento, formou-se a imagem mental de um café - com leite, pão, manteiga e mortadela... mortadela não, salame, cortado fininho, aquecido na chapa do fogão à lenha. Vontade de voltar para casa, de voltar para os braços da mãe. Mas ainda faltavam jornais e depois, o trabalho na oficina - engraxando peças de carro até à quatro da tarde, hora de ir para casa. Um café, um banho, fazer os temas e encarar a escola noturna.
Mais um entregue, lá adiante aquele senhor, que sempre esperava o jornal parado na porta, tomando o mate das manhãs, e a dona da casa rosa, que me deu um pastel outro dia... Os amigos que a gente faz por ai.
Era 1976. Dois anos antes, o Brasil perdera a copa na Alemanha e agora preparava-se para a Argentina, que tinha um guri chamado Maratona (eu só fui descobrir que era com D muito tempo depois). Não tinha mais o Pelé, nem o Rivelino, não tem mais nada...
Acabaram-se as entregas dos assinantes, chegou hora de vender as sobras e, como de costume, estacionei a bicicleta na esquina da livraria do seu Marcelo, que me acolhe com o sorriso costumeiro e uma xícara de chá da índia "por causa dessas folhinhas, muita gente morreu" esse comentário ele seguidamente repetia, referindo-se às navegações para as índias - apaixonado por história que era. Além do chá, ele me chamou para dentro da livraria e observou:
- Tá ouvindo?
Uma melodia ecoava suave entre as pilhas de livros, como que compondo um ambiente mais antigo, dando uma sobriedade àquele pequeno espaço como eu nunca tinha visto.
- Vivaldi - O inverno - ele me tirou da abstração em que eu mergulhara.
- Combina com o dia de hoje, frio mas ensolarado... e por falar no dia, é hoje, não é mesmo?
- Sim.
- Que los cumplas muy feliz! Quantos anos?
- Quatorze.
- Tenho uma coisa para ti.
Alcançou-me um envelope, e de dentro dele tirei uma nota de cinco cruzeiros.
- Não vai fazer besteira com esse dinheiro.
A resposta saiu sem ser pensada, automática:
- Vou levar prá casa. Amanhã vou pedir prá mãe fazer um café com leite, com um pãozinho aquecido na chapa do fogão à lenha, e com salame cortado fininho, bem fininho.

Compartilhe essa obra

Share Share Share Share Share
Inspiração

Resumo autobiográfico de um evento ocorrido na minha adolescência

Sobre a obra

Em princípio, pensei em usar o presente histórico, mas optei pela narrativa em primeira pessoa, com relato no pretérito perfeito

Sobre o autor

Sou apaixonado pelas letras. Participei de concursos literários, onde ja tive obras premiadas e publicadas em livro

Autor(a): HELIO DA SILVA DOS SANTOS (Heliossantos)

APCEF/RS