Chico Minuano

Chico Minuano
Da união de um uruguaio descendente de Charruas com uma brasileira mestiça, filha de negra com branco, nasceu Francisco, em uma manhã de agosto, quando a densa cortina de nuvens cinzentas escondia o sol e o Minuano, vento gelado vindo do planalto da Patagônia, assoviava pelas esquinas da cidade, gelando até os ossos qualquer ser vivente que ousasse desafiar a inclemência do inverno no sul da América do Sul.
Aos seis anos, o menino acompanhou a saída do pai sair para trabalhar no interior do município e, dois dias depois, viu seu corpo imóvel dentro de uma grande caixa de madeira, que foi levada a um campo semeado de cruzes e coberta de terra. Dois anos depois, a mãe lhe apresentou um tal João, que passaria a ocupar o lugar vazio na casa e na cama.
A chegada do estranho trouxe dias tristes e longos, densos de estio e frio, de dor e sofrimento. Certo dia, correndo pela casa em algazarra solitária, Francisco esbarrou e derrubou em uma cadeira na cozinha. O tapa no rosto foi o primeiro de muitos, assim como as surras injustificadas e os gritos ameaçadores.
Quando a mãe tentou interceder em favor do filho, o braço do homem também desceu com força, e o olho roxo foi o selo que a silenciou por todo o sempre. À medida que o menino crescia, a mãe minguava como uma vela que cada vez dá menos luz enquanto queima.
Com onze anos, foi levado pelo padrasto para o trabalho na construção civil, onde experimentou a dureza do cabo da enxada. Virava concreto, carregava tijolo, rasgava os dedos nas pontas afiadas do arame que amarrava as vigas e apanhava. Apanhava tivesse culpa ou não. Apanhava quando o padrasto bebia, apanhava porque devia apanhar.
A mãe, silenciosa e resignada desistiu da vida e, tal como o pai, foi levada ao mesmo campo de cruzes. Agora Francisco estava só. Nem deu tempo de secar as lágrimas e voltou à faina na construção. Foi tanto cimento, tanto tijolo, tanto cabo de enxada, tantas surras que ele nem se viu crescendo e não reparou o quanto estava forte, até contemplar a própria imagem no espelho e ver-se com dezessete anos, em pleno vigor da juventude. Nesse mesmo dia, o tal João veio furioso em sua direção segurando um pedaço de madeira e o jovem reagiu.
Rápido, valendo-se da plena vitalidade, e usando alguns truques que aprendera com os outros peões da obra, segurou o pulso do homem, que surpreso pela reação caiu e derrubou a madeira. Ato contínuo, Francisco pegou-a, ergueu acima da cabeça e, quando ia bater, sentiu o sussurro do vento, o mesmo vento Minuano que soprava no dia em que veio ao mundo. Soprava forte, assoviava, empurrava-o pelas costas em direção ao portão da casa, queria levá-lo à rua, queria levá-lo à estrada, queria dar-lhe o mundo.
Jogou longe a madeira, olhou a cara assustada do tal João, deu-lhe as costas e saiu, deixando-se conduzir pelo único amigo a quem ele confidenciava segredos e compartia tristezas. Dali em diante era apenas Chico, o Chico apadrinhado pelo vento, que adotou Minuano por sobrenome. Não tinha nada, mas tinha o mundo. Tinha a felicidade do pó das estradas, os perfumes e as cores das florezinhas do campo. Ouvia a cantilena dos pássaros, o estridular dos grilos encarapitados nos talos dos arbustos e desfrutava da companhia do sol, da lua e das estrelas da noite.
Andou por onde o Minuano o conduzia. Trocava pequenos serviços por comida e por um canto onde dormir, sem se estabelecer em lugar nenhum. Foi andando e andando, até sumir, engolido pelo tempo e pela paisagem. A caminhada levou-o ao encontro da velhice e o vento o conduziu a uma ravina encravada na pedra bruta, onde a água cristalina que aflorava se acumulava em uma pequena bacia de basalto, antes de precipitar-se cantando entre as pedras, transformando-se num pequeno córrego.
Perto dali uma árvore centenária oferecia sombra e a melodia de um sabiá. Ajoelhou-se ao lado da bacia de pedra e, com as mãos em concha, saciou a sede. Ergueu-se, foi até perto da árvore e estendeu o corpo encarquilhado na maciez do tapete verde de trevo, pontilhado de flores roxas. Cerrou os olhos e deixou-se ficar ali, acalentado pelo sopro da brisa suave, que fazia flauta nas canas das taboas que cresciam às margens do riacho.
Foi um sono profundo, demorado. Tão demorado, que a relva lhe cobriu o corpo como um cobertor, e alma se elevou, levada pelo vento, sábio conselheiro que desconhece fronteiras.

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Inspiração

Há uma voz corrente não confirmada, de que antes do europeu chegar ao sul da América do Sul, os Minuanos e Charruas teriam tido um confronto feroz, e um feiticeiro Charrua teria amaldiçoado o vento, com a intenção de causar sofrimento e matar de frio os inimigos. Baseado nisso, imaginei um personagem batizado pelo vento e conduzido por ele.

Sobre a obra

Usei a narrativa em terceira pessoa, com poucos coadjuvantes e atemporal. Essa última característica permite que o leitor posicione o momento histórico ne década de 1960, 70, ou nos dias atuais, já que o eixo motivacional da obra gira em torno da violência doméstica.

Sobre o autor

Como o personagem, sou fronteiriço, de Santana do Livramento. Tive o privilégio de caminhar pelas mesmas ruas por onde o argentino Jose Hernandez caminhou, enquanto escrevia sua obra imortal: o Martin Fierro. Respirei os mesmos ares e herdei do meu pai a paixão por poesias e trovas a martelo, típicas da tradição gaúcha.

Autor(a): HELIO DA SILVA DOS SANTOS (Andarilho da fronteira)

APCEF/RS