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Família Feliz

Família Feliz

Um dia qualquer, presa em um congestionamento, com minhas mãos estrangulando o volante, meus ouvidos engolindo as notícias do rádio, meus pulmões saboreando ares nauseabundos cuspidos por veículos vis, percebo meu atropelamento por um adesivo que colou na minha atenção.
O adesivo era do tipo “Familinha Feliz”, ilustração que retrata o pai e ou a mãe, os avós (em alguns casos, ops, carros) e as crianças e cachorros e gatos e aves e até plantinhas. Sim, o adesivo daquele carro era do tipo.
A colagem do carro que “me atropelou” reproduzia a imagem de um homem, não uma família, apenas o contorno de “um” homem. O adesivo estava nítido, ao tirar os óculos de sol percebo fragmentos do que um dia foi uma família feliz.
Meu olhar solidário sentiu-se pesarosamente solitário.
Numa época de exageradas demonstrações de momentos felizes, seja no Instagram ou Facebook ou para-choque de carro, ver o retrato do isolamento de um desconhecido fez com que minha imaginação rabiscasse um semblante para o motorista, um fragmento de vida para aquela existência exposta em pedaços, um embelezador para tão despovoada história.
Explicação um: Os outros adesivos apenas descolaram da lataria do carro. Uma justificação banal.
Explicação dois: O carro, antes pertencente à família feliz, foi vendido e o novo proprietário ainda não atualizara seu perfil no para-choque do veículo. Pode até ser, mas sigo em busca da verdadeira crônica.
Outra: O condutor, pessoa medíocre e tediosa, foi abandonado pela família. Triste. Verídico?
Mesmo com mil explicações de uma mente dopada pelo monóxido de carbono dos carros engarrafados, nada justifica a superexposição gerada por um cafona adesivo.
Olho ao redor a buscar com quem conversar sobre a efígie. Estou solitária como a imagem grudada no carro da frente.
Reparo nas pessoas encapsuladas em seus veículos que ignoram a mutável vizinhança. Balançam a cabeça em ritmos obscuros. Abrem e fecham os lábios em conversas silenciosamente enigmáticas. Desaparecem na escuridão dissimulada das películas nas janelas. Todas nós parecemos com a triste figura do adesivo.
O rádio repete a notícia já ouvida em outras ruas congestionadas. O ronronar dos motores começa a embalar meus bocejos. Enfim o engarrafamento começa a diluir-se gota a gota, no mesmo ritmo o adesivo se distancia.
Ao vislumbrar outros para-choques que passam rapidamente reflito sobre a valorização do compartilhar, não de sonhos ou projetos, mas de uma felicidade meramente midiática.

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Inspiração

Esta crônica nasceu em um engarrafamento, sim, como diz o texto eu vi um adesivo solitário e me solidarizei. A imagem despertou uma certa curiosidade sobre o retratado, uma certa tristeza pela solidão ali estampada, uma repulsa à felicidade midiática de hoje em dia. Assim, do adesivo, minhas palavras brotaram.

Sobre a obra

É uma crônica em suas características básicas: texto curto de linguagem coloquial, retratando um momento cotidiano contemporâneo, publicada no site da FENAE.
Foi um processo de lapidação. A história já existia, mas precisava ser enriquecida lexicalmente.
O resultado é envolver o leitor por meio das descrições e das palavras nem sempre usuais.

Sobre o autor

Amo registrar em palavras ou imagens as histórias que a vida nos conta. Com a aposentadoria meu olhar ao redor mudou e hoje percebo pequenos detalhes, minúsculas narrativas da natureza e dos seres, que tento reproduzir por meio de textos literários, fotografias, desenhos.
Sobre meu talento? Respondam vocês se tenho algum talento.Gratidão!

Autor(a): LILIAN DEISE DE ANDRADE GUINSKI (Lilian Guinski)

APCEF/PR