As águas de janeiro

Passados vários meses, a lembrança mais marcante que eu teria da enchente seria o cheiro. Um fedor pegajoso de umidade, de lama, que ficaria impregnado nas paredes por mais que eu as esfregasse. O cheiro parecia ainda estar lá quando eu chegava da rua e abria a janela do quarto, deixando entrar o sol. Rafael não conseguia perceber; achava que era psicológico, coisa de minha cabecinha feminina cheia de imaginação. Nos dias de chuva, porém, eu o sentia com mais intensidade, principalmente quando nosso filho de um ano e quatro meses apoiava as mãozinhas nas paredes geladas.
Antes da enchente, eu já queria me mudar dali. Vivíamos um pouco espremidos, seis pessoas numa casa de cinquenta metros quadrados com dois quartos. Rafael, eu e o bebê no quarto da frente; a mãe, a avó e a irmã de Rafael no dos fundos, que era maior e recebia o sol da manhã.
- Esta é a sua casa - dizia Rafael, mas eu não me sentia em casa. A família era dele; a minha morava em outra cidade. Eu sequer abria a geladeira sem pedir para as outras mulheres da casa. Cidinha, mãe de Rafael, ria de mim por isso – deixe de ser caipira, menina! Eu dizia a ela que fora educada assim, não gostava de incomodar nem de mexer nas coisas dos outros.
Eu queria uma moradia que fosse realmente minha, onde eu tivesse liberdade para cozinhar o que quisesse – ou até mesmo não cozinhar, se Rafael estivesse no clima para comer um lanche. Onde eu não precisasse esperar pelo “meu dia” para poder lavar nossas roupas. Onde eu pudesse trocar as cortinas ou mudar a disposição dos móveis da sala, se assim desejasse. Rafael me pedia paciência, estava difícil juntar dinheiro. Ele era vendedor autônomo e dependia de comissões. De segunda a sábado, eu ia para o meu trabalho de balconista numa loja de calçados que me rendia um salário de três dígitos, sonhando com um emprego melhor que nos permitisse pagar aluguel, ainda que fossem dois ou três cômodos.
Não tinha qualquer problema com a mãe de Rafael, que era um amor. Todos falam mal de sogra, mas eu tinha sorte. Falante, despreocupada, Cidinha era vista como a vergonha da família. Tinha um metro e sessenta de altura, seios fartos e curvas generosas, uma barriga confortável, cabelos negros brilhantes, boca vermelha mesmo sem batom. Com quarenta e cinco anos, transpirava vida e sensualidade. Uma pecadora aos olhos da mãe e da filha. Aos meus olhos, uma mulher que sabia viver. E o melhor de tudo era que gostava de mim, mesmo que as outras mulheres da casa me desprezassem.
Dona Maria, mãe de Cidinha, era frequentadora assídua de uma igreja do bairro e seguia à risca as normas que aprendera lá. Levava os netos consigo quando eram crianças; Rafael não se apegara à religião, mas Tamires copiava em tudo os passos da avó. Pelo menos a menina eu criei do meu jeito, dizia a senhora idosa, cheia de orgulho. Não será uma perdida, como essas por aí que engravidam antes de casar. Quando dona Maria usava essa frase, eu sabia que era a mim que se referia.
Tamires também me desprezava. Para ela, eu era a intrusa que levara seu irmão para o mau caminho. Seus olhos de serpente me perseguiam pela casa. Muitas vezes eu tentara me aproximar, mas ela me repelia sempre. Então eu a tratava com a mesma cortesia que dispensava aos clientes da loja, mas sem o carinho da irmã que eu poderia ter sido. Tínhamos quase a mesma idade, eu dezoito anos, ela dezenove. Eu vivera muitas coisas que ela só conhecia nos livros, e isso ela não podia suportar.
Eu achava a irmã de Rafael feia, não por causa dos traços do rosto, mas pela cara amarrada e pelas coisas que ela dizia. Pelas roupas que usava e que não lhe caíam bem: camisas grandes demais para seu corpo magro, saias abaixo do joelho mostrando parte das canelas finas como caniços. Herdara os lindos cabelos brilhantes da mãe, porém trazia-os sempre presos, escondendo em vez de exibir sua feminilidade. Não tinha nascido assim; eu vira fotos suas pela casa como uma criança bem graciosa. Acredito que, com o tempo, as pessoas se tornam aquilo que elas pensam. Será que alguns nascem com o dom de sentir prazer com as mínimas coisas, enquanto outros não conseguem? Se eu me sentia uma boba alegre quando o sol se derramava nos aposentos da casa, era incapaz de ensinar-lhe isso.
Quando Tamires sentava-se à mesa com a avó e começavam a falar da vida alheia, eu dava um jeito de sair de perto. De que adianta tanto ir à igreja e ficar desejando o mal para os outros? Ela também vivia me dando indiretas, dizendo que era virgem e chamando de puta a uma certa prima que se casara grávida.
- Se a sua prima é uma puta, porque eu seria diferente? – dizia eu, quando perdia a paciência. - Fiz a mesma coisa que ela, mas nunca pedi um centavo seu para comprar comida para meu filho.
Rafael tomava minhas dores, dizendo à irmã que ela não conhecia nada da vida para poder julgar os outros. À noite, no quarto, reclamava para mim:
- Ela é uma tonta que acredita em tudo que minha avó fala, e se acha melhor do que todo o mundo. Você já viu como ela despreza minha mãe?
Um dia tiveram uma discussão porque alguém na rua se referira a Cidinha como “a viúva alegre” do bairro. Tamires achara aquilo vexaminoso. Brinquei com Rafael: antes viúva alegre do que triste, você não acha? Ele respondeu que a irmã seria mais feliz se tivesse puxado à mãe.
E eu pensava comigo mesma que era despeito. Que vida ruim devia ser a de Tamires, invejando todas as coisas que eu tinha. Estava na cara que ela queria um marido, um filho, um emprego. Queria também ter corpo de mulher, e por isso dizia que eu estava gorda. Coitada dela, perdendo a chance de ser minha amiga.
No domingo fatídico, a irmã de Rafael não estava em casa. Havia ido para um acampamento de férias com o pessoal da igreja, e só retornaria no meio da próxima semana.
A tragédia aconteceu às quatro e vinte da tarde. Quando nosso vizinho mandou a mensagem para Rafael, estávamos numa sorveteria do centro da cidade, nos abrigando da chuva repentina. Tinha feito um calor impossível, e o bebê já havia devorado boa parte do meu sorvete. Vimos quando a nuvem negra se formou na serra, e em menos de quinze minutos a chuva desabou.
- Temos que correr – disse Rafael, com a voz firme. E me mostrou o celular. Desceu uma tromba d’água da serra, dizia a mensagem. O rio subiu, e o bairro inteiro está alagado.
Não, por favor não, pensei, enquanto meu coração saltava. As duas senhoras estavam sozinhas em casa. Por favor, que elas estejam bem... Fiquei paralisada, segurando o bebê bem forte em meus braços enquanto Rafael dirigia. Ainda bem que ele conseguia raciocinar em meio à aflição.
A dois quarteirões de casa, a água estava tão alta que não era possível seguir com o carro. Rafael estacionou e me pediu para esperar; a chuva ainda estava muito forte para eu descer com o bebê. Apavorada, fiquei olhando enquanto ele desceu do carro e enfrentou a enxurrada. Deus, proteja-o, pensei. Por favor. Por favor. Não permita que nada de mal aconteça. Nos locais onde era possível andar, a rua estava cheia de curiosos.
– Você não pode entrar aí – ouvi alguém dizer.
– Minha mãe e minha avó estão na casa! – gritou ele, e continuou avançando com dificuldade, com a água já acima dos joelhos. O bebê começou a chorar, e eu o embalei até ele se acalmar, sem tirar os olhos de Rafael. Quando ele chegou à esquina de nossa casa, eu mal podia vê-lo, e a água chegava quase à sua cintura.
O bebê finalmente adormeceu. Continuei rezando. Era a única coisa que eu podia fazer, enclausurada no carro e sem notícias. Aquela situação era surreal, parecia estar acontecendo com outras pessoas. Depois de uma eternidade, ouvi o celular de Rafael tocar. Só então percebi que ele o havia deixado no carro.
Ao ver o número do telefone de Cidinha na tela, atendi. Era Rafael. Consegui distinguir suas palavras através do som incessante da chuva.
- O muro dos fundos está destruído. Perdemos todos os móveis. A água já está baixando. Estamos todos bem.
Graças a Deus, todos bem. Meu coração se encheu de alívio. O muro, os móveis, os mantimentos, a gente resolveria de alguma forma. Pouco depois, a água começou a baixar. Quando a chuva diminuiu, Rafael voltou para o carro e nos levou para casa. A calçada estava escorregadia, e tive que me apoiar nele para chegar ao portão. O bebê acordou. Começou a rir e sacudir os bracinhos, achando tudo aquilo muito engraçado. Cidinha puxava a lama para fora com um rodo. Ao me ver, parou o que estava fazendo e me abraçou.
- Ainda bem que não fui com vocês. Estava pressentindo... Se a avó está sozinha em casa, tinha morrido.
Senti um calafrio. Olhei em volta, com meu filho bem seguro nos braços. A água subira cerca de um metro do chão; nas paredes era visível a marca escura. Havia lama em todos os cantos. A geladeira estava tombada. O muro do quintal estava destruído e havia blocos espalhados por todos os lados. A lavadora tinha ido parar no meio do quintal. Os sofás e as camas estavam encharcados. A televisão e o forno de microondas estavam ilesos, porque ficavam fora do alcance das águas. O armário de produtos de limpeza desabou, espalhando seu conteúdo pelo chão cimentado da lavanderia.
As horas seguintes passaram como um filme em preto e branco. Pessoas conhecidas e estranhas entrando nas casas, ajudando a retirar o lodo. O caminhão da prefeitura jogando água nas calçadas. Os parentes que vieram buscar dona Maria, mas não tinham lugar para abrigar a todos nós. A noite passada sem dormir no ginásio da escola, enrolados em cobertores, em meio a cinquenta famílias do bairro. O curioso desejo que senti por Rafael naquela madrugada, quando mal podíamos nos tocar. As vezes em que tentamos sem sucesso ligar para Tamires, até que finalmente conseguimos falar com o pastor da igreja, que se prontificou a ajudar no que fosse possível. As lágrimas da vizinha que perdera o cachorro, levado pela enxurrada. As doações que chegavam de todas as partes. Desconhecidos trazendo água e lanches; a beleza em meio ao caos. A sensação de que a vida nunca mais seria a mesma.
Quando voltamos para casa, ainda estava escuro. Cidinha olhava o muro destroçado e não conseguia falar. Rafael esbravejava contra o prefeito e pensava em empréstimos, tão perdido quanto todos os outros, mas tentando encontrar um ponto de partida para reorganizar nossas vidas. Avisei no meu trabalho que iria faltar e passei a manhã esfregando as paredes, enquanto meu marido e minha sogra lavavam os utensílios da cozinha e separavam os mantimentos que poderiam ser aproveitados. O trabalho duro me mantinha em movimento e ajudava a lidar com o desespero.
Separamos e lavamos as roupas, tentando salvar o que fosse possível. As toalhas de dona Maria nunca mais ficariam brancas. Nem a camiseta que Rafael ganhara de seu melhor amigo, e que raramente usava para que não gastasse.
No meio da manhã, uma vizinha passou informando que os moradores deveriam procurar a secretaria da escola, pois o pessoal da prefeitura estava fazendo um cadastro para as famílias receberem doações. Fui até lá com minha sogra, que mal conseguia falar. A atendente sorriu ao nos ver chegar.
- Ela perdeu os documentos na enchente – expliquei. - Será que tem problema?
A moça abriu um sorriso maior ainda.
- Não faz mal. Quem não conhece a Cidinha?
Uma outra jovem nos levou pelo corredor. As salas de aula estavam apinhadas de roupas, sapatos e cobertores, todos empilhados. Um grupo de voluntários separava os itens por tamanho. Havia também colchões e colchonetes, em diversos estados de conservação.
Soubemos que um fazendeiro da região estava doando vinte fogões novos, encomendados a uma grande loja de departamentos. A senhora vai precisar de um? – perguntou a atendente - Vou colocar seu nome na lista.
Um amigo de Rafael nos deu um colchão de casal usado. Ganhamos também um sofá quase tão bom quanto o antigo. Com o dinheiro que tínhamos guardado para a excursão à praia em março, compramos roupas. Cidinha ganhou um guarda-roupa de menina, todo em tons de rosa e branco; era pequeno, mas serviria até conseguirmos alguma coisa mais adequada. Depois de limpa e seca, a geladeira voltou a funcionar, para alívio de todos. Os armários de cozinha foram comprados em vinte prestações. Futuros candidatos a vereador e prefeito percorreram o bairro, prometendo obras para contenção do rio. Por conta da enchente, naquele ano a campanha eleitoral começava mais cedo.
Tamires voltou no terceiro dia, dizendo a Cidinha que ficara muito preocupada e rezara muito por nós, mas não tinha ninguém para trazê-la de volta. No final das contas, havia muito pouco que ela poderia fazer depois que a tragédia já tinha acontecido. À noite, enquanto ainda tentávamos nos adaptar ao novo colchão, Rafael reclamou:
- Estou dizendo que ela não se preocupa! Se fosse eu que estivesse longe, brigaria com todo o mundo até conseguir uma carona. Eram minha mãe e minha avó que estavam aqui!
No escuro, apertei sua mão. Não queria que eles brigassem, não agora, com o mundo pelo avesso.
Com o passar dos dias, já não se falava tanto no assunto. Mas a tatuagem de fênix que Rafael faria no braço algum tempo depois ficaria como um símbolo de nossa capacidade de renascer. Às vezes Cidinha me dizia que tinha pesadelos. Maria se calava; ninguém sabia as marcas que ficaram na senhora idosa. Eu me lembrava com gratidão da solidariedade que recebemos, e que tornou aqueles dias menos sombrios. E abraçava, abraçava meu filho, aliviada porque nenhum mal acontecera às pessoas da casa.
Dona Maria e Tamires finalmente estavam em paz comigo. Naqueles dias sombrios, eu fora o apoio de Cidinha, a quem elas amavam ainda que fossem incapazes de expressar. Eu desejara tanto ver a família em harmonia, e agora parecia acontecer sem nenhum sacrifício. A filha escandalosa, a mãe que fazia passar vergonha, tinha muito a ensinar para elas. E ainda que as marcas não sumissem, ainda que eu sentisse o cheiro da lama nas paredes lavadas com cloro, uma suave esperança me enternecia o coração.
Ao retornar do trabalho numa quinta-feira, me surpreendi ouvindo as vozes de Rafael e Tamires em altercação na cozinha. Fiquei parada na porta dos fundos. Vi Tamires levantar-se e colocar uma panela no fogão, com violência. Rafael repetiu-lhe o que me dissera no quarto, que ela não se preocupava com a mãe, nem com a avó. Ela o olhou, incrédula, com uma expressão furiosa. Mas logo recuperou a compostura e observou:
- Você só vê defeitos em mim, não é? Eu não podia adivinhar que a enchente ia acontecer justo naquele dia. Foi a vontade de Deus. Pelo menos sou uma mulher direita, ao contrário de muitas por aí que têm filhos antes do casamento.
Olhei para além do muro e vi o rio ao longe, correndo em seu leito como se nunca tivesse saído de lá. Um dia tudo tem que voltar à normalidade.

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Inspiração

Acompanhei de perto as vítimas da enchente em Águas da Prata, em janeiro de 2016, e essa experiência inspirou a escrita. No conto, existe também um conflito familiar em meio ao desastre natural.

Sobre a obra

A enchente é contada do ponto de vista de uma adolescente de classe baixa, que engravidou e foi morar com a família do namorado, sentindo-se uma intrusa no ambiente moralista e preconceituoso. Assim, além da tragédia, há também os conflitos entre os moradores da casa.

Sobre o autor

Comecei a escrever assim que aprendi. Com doze anos, ganhei meu primeiro prêmio literário, e desde então nunca mais parei. Tenho quatro livros publicados, além de vários contos e crônicas. Escrevo sobre pessoas comuns e, ao mesmo tempo, extraordinárias.

Autor(a): JENNY ALEXANDRA RUGERONI (Jenny Rugeroni)

APCEF/SP