- Página inicial
- Detalhe obra
O Funcionário Padrão
O FUNCIONÁRIO PADRÃO
Orestes chegou para seu primeiro dia de trabalho na repartição por volta das onze. Sua jornada seria do meio dia à seis, mas resolveu chegar um pouco mais cedo para causar uma boa impressão. Foi de terno e gravata, mesmo sabendo não ser necessário. Foi recebido pelo supervisor, Sr. Edivaldo, já que o gerente, Dr. Cupertino, não se prestava a perder seu tempo para receber mais um novato.
O serviço do seu setor era analisar processos administrativos e dar um parecer: aprovado, reprovado ou, na maioria dos casos, exigir ajustes ou solicitar mais documentos. Não atenderia público diretamente. Apenas daria o parecer a processos que foram elaborados e retornariam, após sua análise, ao setor de atendimento público propriamente dito. O salário inicial não é lá essas coisas, mas, para quem estava em começo de carreira, é melhor do que a maioria dos jovens consegue.
Sr. Edivaldo, o supervisor, cheio de pompa substituindo o chefe, começa a ladainha.
- Seu Orestes - o novato tinha menos de 20 anos - seja muito bem-vindo. Como seu supervisor, me cabe fazer conhecer os serviços prestados por nossa repartição e a equipe com quem trabalhará. Nosso trabalho tem uma grande importância para todo o processo administrativo desta instituição.
Muito lisonjeiro, para alguém cujo trabalho se resumia a conferir alguns papéis e criar dificuldades para quem precisava do serviço, Sr. Edivaldo continua.
- Eu pessoalmente lhe apresentarei o serviço e nomearei um outro funcionário que lhe dará todo o apoio necessário nos seus primeiros dias.
Orestes, com o entusiasmo de iniciante, agradece.
- Obrigado por sua consideração, Seu Edivaldo. Prometo me dedicar ao máximo para aprender logo o serviço e contribuir para o resultado do nosso setor.
Sr. Edivaldo aproveita a deixa e continua.
- Muito bom falar em resultado, seu Orestes. Nesta repartição os funcionários são avaliados pela qualidade do seu trabalho e atendimento prestado aos nossos clientes.
Na verdade, ninguém na repartição atende diretamente os clientes. Atendem aos demais funcionários da instituição, estes sim, responsáveis pelo atendimento direto. Sr. Edivaldo tinha razão ao dizer que estes últimos dependem da qualidade do atendimento da repartição.
No meio da preleção, se junta a eles um outro funcionário. Sebastião é um cidadão de meia idade, muito bem aparentado e de um falar suave e bem-humorado.
- Ah, então temos aqui um novo colega. Que bom! Estamos precisando de gente nova mesmo. Sangue novo. Pessoas com um olhar diferente são muito importantes para melhorar a qualidade do nosso trabalho. Seja muito bem-vindo e pode contar comigo para o que precisar.
Orestes agradeceu e Sebastião retornou à sua rotina.
SR. Edivaldo, então, comentou.
- Sebastião é o funcionário mais bem avaliado por aqui. Os colegas o admiram muito e os clientes só tecem elogios a seu respeito. Não à toa que é nosso funcionário sênior. É uma pessoa que observa as oportunidades na instituição e sabe crescer profissionalmente com elas.
Feitas as preliminares, Orestes começou sua lida. Como todo funcionário novo, demorou algum tempo para conhecer as coisas. Mas, como o serviço não é tão complicado assim, rapidamente se inteirou das coisas e entrou na rotina.
Como todo iniciante, quis mostrar serviço. Trabalhou com afinco. Pouca inspiração e muita transpiração, como se diz, até porque para fazer o que a equipe faz não é preciso muita inspiração mesmo. Procurou ser o mais minucioso possível nos processos, exigindo todos os documentos necessários e lendo cada um deles no detalhe para que cada processo seja concluído com perfeição. Quando consultado, procurou ser objetivo e dar aos colegas, ou clientes como diz Sr. Edivaldo, a orientação com objetividade e rigor.
Um certo dia, o próprio Dr. Cupertino chamou Orestes em sua sala.
- Então, Orestes, como está se saindo?
- Dr. Cupertino, estou muito satisfeito com o trabalho. Tenho procurado me dedicar ao máximo para avaliar os processos da melhor forma possível.
Ao que Cupertino responde.
- Ótimo. O Edivaldo comentou que aqui trabalhamos com qualidade e somos avaliados no nosso atendimento, certo!? Pois bem, tenho recebido várias críticas a seu respeito.
Orestes, meio que confuso e apavorado, respondeu.
- Lamento muito Dr. Cupertino. Prometo me dedicar para melhorar o desempenho.
Dr. Cupertino conclui, dizendo.
- Tenho certeza, Orestes.
E assim foi Orestes, chateado e frustrado com as palavras que ouvira. Decidiu que aquilo terminava aí. Passou a se dedicar ainda mais. Nem se levantar da mesa para tomar um café ou beber uma água. Passou a levar trabalho para casa. Não conseguia dormir pensando nos processos. Passou a ficar além do expediente, decidido em mostrar ao Dr. Cupertino que estava diante de um futuro funcionário padrão.
Passaram algumas semanas e Dr. Cupertino o chamou novamente. Orestes, ansioso, foi logo perguntando ao chefe como estava o seu trabalho e o que ouviu não o agradou muito.
- Orestes, você ouviu minhas recomendações da nossa última conversa e me garantiu que se dedicaria mais ao seu trabalho. E o que vejo? As reclamações de nossos clientes aumentaram. Os erros que comete em seus pareceres também. O senhor sabe que está em estágio probatório, não sabe? Do jeito que vai, não sei não...
Orestes ficou tão desnorteado com as palavras do Dr. Cupertino que faltou forças para voltar à mesa de trabalho. Decidiu ir até a rua respirar um pouco e tomar um café para ganhar ânimo. Em seu passeio para esfriar a cabeça, passou por uma banca de jornal e começou a ler as manchetes do dia. Eis que encontrou justamente quem? Sebastião em um animado bate papo com o pessoal da banca. Assim que o viu, Sebastião lhe chamou para se juntar à conversa.
- Pessoal, esse aqui é o Orestes. Menino que acabou de chegar ao departamento. Garoto muito bacana. Quando aparecer por aqui, tratem ele bem, hein!?
A reação dos presentes à conclamação de Sebastião fez ver o tanto de respeito as pessoas nutriam por ele.
Aí veio que uma luz à sua mente.
- Como não pensei nisso antes!? Se o Sebastião é o funcionário de maior sucesso na repartição, é justamente nele que preciso me espelhar. E ficou radiante com a ideia que, com certeza, mudaria a sua trajetória na repartição.
Para não parecer mal, até por ser novato no lugar, começou a bisbilhotar, de forma discreta, o trabalho do Sebastião. Os números deste eram impressionantes. Todas as metas cumpridas. Nenhum erro de avaliação. Mas a cereja do bolo era sua avaliação por parte dos “clientes”: as pessoas amavam Sebastião. Não havia ninguém que não elogiasse a excelência do trabalho de Sebastião. Não eram poucos os que o faziam formalmente. Sobremaneira a forma como tratava as pessoas, com respeito, destacando o interesse em atendê-las da melhor forma. Realmente, Sebastião era merecedor de todas as honras que sobre ele recaiam. Encantava todos à sua volta. Era um fenômeno.
Ganhou coragem e decidiu solicitar umas dicas ao próprio.
- Sr. Sebastião, meu desempenho está muito ruim no trabalho. Já tomei duas broncas do D. Cupertino. Estou preocupado e preciso melhorar. Sei que é uma pessoa muito ocupada, mas ficaria honrado se o senhor pudesse me dar uma orientação.
Como era de se esperar, Sebastião respondeu com a simpatia que lhe era peculiar. Procurou animar Orestes.
- Mas é claro, Orestes. Fique tranquilo. No começo é assim mesmo. Daqui a pouco você pegará o jeito das coisas e fará um trabalho melhor que a maioria daqui.
E continuou...
- Façamos o seguinte: vamos tomar um café e conversar um pouco para você dar uma relaxada.
E os dois saíram da repartição, Orestes todo preocupado em se ausentar da sua mesa, atravessaram a rua e entraram em uma cafeteria das mais chiques. Sebastião gozando da cara assustada de Orestes saiu com essa.
- Essa é por sua conta, hein Orestes. Consultoria custa caro.
Chamou a dona da cafeteria.
- Ô Lúcia, esse aqui é o Orestes. Um dia será o gerente da repartição.
E Orestes, morrendo de vergonha, mas encantado, como não poderia deixar de ser, com o jeito de Sebastião. Uma mistura de simpatia, bom humor e respeito. Era perceptível que o tratamento dado por todos a Sebastião era diferenciado. Sebastião, agora com um jeito mais sério, disse:
- Orestes, façamos o seguinte: amanhã o chato do Cupertino estará fora. Aí você senta comigo e vou lhe apresentando como fazer o trabalho. Poder ser!? Quer saber de uma coisa, gostei de você Orestes!
Orestes não se continha de alegria. Ficou completamente entusiasmado com a ideia de acompanhar o trabalho do melhor funcionário da repartição.
No dia seguinte, tão entusiasmado que estava, chegou cedo ao trabalho, ansioso por encontrar com Sebastião.
Esperou, esperou, esperou... e nada do Sebastião. Lá pelas duas horas da tarde, chegou seu mestre com a maior cara de pau do planeta. Antes de chegar à sua mesa, cumprimentou todo mundo e parou para trocar umas ideias com Sr. Edivaldo. Falou um pouco de tudo e de nada ao mesmo tempo. Quando se deparou com Orestes, disparou ...
- Orestes, vamos tomar um café!
E lá vão Sebastião e Orestes seguindo a rotina de cumprimentar D. Sônia, passar na banca de jornal, parar para comentar as notícias... E Orestes naquela impaciência. Voltaram à mesa de trabalho por volta das três horas.
Sentados à mesa, Sebastião começou seu trabalho meticuloso. Pegou um dossiê e começou a analisar. Folheou, folheou, folheou...
- Hum... este está perfeito!
Orestes, intrigado, pergunta...
- Sr. Sebastião, o senhor não vai ler a documentação?
Diante da indagação, o mestre responde.
- Orestes, o que importa é ter todos os documentos necessários. Quem tem que se preocupar com o preenchimento não sou eu.
Orestes ficou tremendamente impressionado para a objetividade de Sebastião. Terminaram de analisar o primeiro dossiê e saíram para beber água. Sebastião, com toda a calma do mundo, apresentou Orestes para todas as pessoas que cruzaram no corredor.
De volta à mesa, Sebastião, curioso, perguntou para Orestes.
- Quantos processos você consegue analisar em um dia?
- Seu Sebastião, consigo fazer no máximo apenas uns oito ou nove.
Sebastião ficou com a cara no chão.
- Ficou louco?
Orestes, sem graça, perguntou.
- Quantos o senhor consegue fazer em um dia?
Para a surpresa de Orestes, Sebastião respondeu.
- Quatro.
Diante de um Orestes lívido, Sebastião continuou.
- Você sabe qual é a sua meta diária? Quatro. Então por que faz oito ou nove? Perdoe-me pelo que vou dizer, mas essa é razão por que seu número de erros é tão grande. Primeiro, quer olhar cada página de um processo. E, depois, fazer o dobro da sua meta.
E continuou.
- Orestes, preste atenção, você não está aqui para criar dificuldades. Concentre-se naquilo que é o seu trabalho: facilitar que os processos andem e rápido. Tem pessoas que dependem da sua aprovação. Então facilite as coisas.
Ato contínuo, Sebastião pegou o telefone. Ligou para o funcionário que enviara o último processo recém analisado. É claro que Sebastião já o conhece bem.
- Oi, Almeida. É o Sebastião, tudo bem com você? E D. Antônia e as crianças, como vão? Ah, que bom. Estou aqui com o processo do... como é mesmo o nome... D. Emengarda. Já está aprovado, hein, amigo. Imagina, para nós não existe isso. Só não esquece de enviar seu comentário sobre a análise, tá ok!? Obrigado. Pode contar com a gente.
Orestes, intrigado, pergunta.
- Seu Sebastião, o senhor telefona sempre que um processo foi concluído?
Sebastião, já com uma certa impaciência, esclarece.
- Orestes, primeiro para de me chamar de “Seu” Sebastião, porque não sou seu chefe. É claro que ligo para todos. Eles estão ansiosos para dar a boa notícia aos clientes. E, claro, você ligando, mostra sua consideração para com os colegas. É uma forma de encantar as pessoas que dependem de você.
- Mas, Seu Sebastião, desculpe, Sebastião, até quando é interurbano ou celular? A conta do telefone deve ir lá nas alturas. Aqui estão sempre falando em cortar os custos.
- Orestes, preste atenção, o tamanho da conta do telefone está entre as suas metas? Não!
E, continuando.
- Já falei que você fica preocupado com o que não é problema seu. Orestes, meu amigo, vou lhe explicar mais uma vez. Seu problema é ficar procurando pelo em ovo. O seu trabalho é facilitar as coisas e não complicar.
Finalizados todos os quatro dossiês regulamentares, já está quase na hora de encerrar o expediente. Sebastião liberou o pupilo e começou arrumar as coisas para partir. Orestes, meio que aliviado meio que assustado, agradeceu as orientações e o apoio de Sebastião. Este concluiu a conversa com um último comentário.
- Com relação ao estágio probatório, fique tranquilo. Ninguém quer se indispor com a equipe demitindo quem quer que seja. Quando querem se livrar de alguém é simples: basta promover a pessoa. Ah, vamos tomar um chope?
FIM
Compartilhe essa obra
Inspiração
Muito se fala sobre meritocracia. Quem é contra premiar um trabalho bem feito? Entretanto, metas e indicadores mal elaborados, acabam por gerar resultados diferentes do planejado, Os funcionários se organizando apenas para cumprir metas e não para fazer um bom trabalho. A meritocracia, por seu lado, pode ser extremamente injusta.
Sobre a obra
Trata-se de uma situação hipotética ocorrida em repartição que possui uma política de resultado bem definida. Entretanto, os funcionários desenvolvem um jeito próprio de atingir as metas que ignora a qualidade do trabalho. Um funcionário novo chega e tem dificuldade em sobreviver em meio à situação.
Sobre o autor
Sou carioca e moro atualmente em Campo Grande / MS. Tenho 57 anos, casado e com dois enteados, gêmeos de 21 anos. Sou formado em Ciências Sociais. Gosto mais de ler do que de escrever. Chama minha atenção a falta de sentido de muitas coisas da vida cotidiana. Procuro escrever, de forma bem humorada, sobre tais coisas.
Autor(a): PAULO ROBERTO ALVES MOREIRA DA CONCEICAO (Paulo Roberto Conceição)
APCEF/MS
Obra não está disponível para votação.