Talentos

O Coelhão e o Galo Fino

O COELHÃO E O GALO FINO

Todas as minhas lembranças foram marcadas pelo meu padrão físico. Eu era destituído de qualquer camada adiposa que constatava admirado em todos os que me rodeavam e viviam se exibindo. Atualmente, os obesos talvez sofram mais que os magricelos, mas, naqueles tempos, só Deus e eu sabemos o que era o bullying. Obviamente, esse termo não existia na época, mas seus males... ah, esses eu posso dizer que sofri na pele. E por que não dizer nos ossos, já que era só o que eu tinha?! Eu deveria ter uns quinze apelidos aproximadamente, mas não convém citá-los aqui. Seria mais uma razão para remoer os idos sem ter por quê.

Tinha um colega em particular, no ensino primário, que era mais incomodativo que os outros. Era baixinho e gordinho, muito mais forte do que eu, e, todo santo dia, me chamava de uns dez dos quinze apelidos não citados. Num final de aula, à tardinha, resolvi investir. Fui para cima, apelei para a ignorância e, por razões óbvias, levei uma surra. Lembro-me até hoje de minha irmã pregando os botões da camisa que foram arrancados durante a luta. Ainda devo esse favor a ela, já que meus pais não deveriam saber do ocorrido, caso contrário, haveria uma segunda surra.

O azedume desse limão que provava a cada dia que amanhecia me fez pensar que foi errada e precipitada minha atitude de ter ido à luta, no sentido literal da palavra, sem ter o mínimo de conhecimento. Deveria ter me planejado e treinado para isso.

Quando assisti pela primeira vez na TV a alguns filmes de Kung Fu e afins, nos quais os movimentos rápidos dos lutadores e seus golpes certeiros e chaves de braço derrubavam qualquer grandalhão, fiquei encantado. Incrível ver aqueles magrelos lutando daquele jeito. Percebi que eu poderia ser assim também. Decidi estudar, por conta própria, arte marcial, já que na época não havia professores e era algo recente nos países ocidentais. Decidi não sofrer mais bullying pela minha magreza. Lia muito sobre caratê e kung fu e treinava durante horas, batendo num saco de estopa improvisado e imitando movimentos da arte.

O bullying continuava, e eu sempre calado, planejando. E, assim, uns dois anos após aquela inesquecível surra, o mesmo colega me afrontou na saída da aula, despejou-me alguns apelidos seguidos de um empurrão. Tentei evitar o confronto, já que essa atitude era o mandamento número um de qualquer arte marcial. Mas não teve jeito. Já havia se formado, ao nosso redor, uma “tradicional rodinha” de uns vinte meninos, e partiam provocações de todo lado. Aquela era a hora. Olhei para o adversário e observei seus pontos vulneráveis. Deixou a boca do estômago descoberta, sabia que era destro – então seu lado fraco era o esquerdo –, e, baseado nisso, sem mais delongas, desferi o primeiro golpe, que foi forte e certeiro. Ele ainda tentou me acertar, mas eu fui mais rápido dessa vez, e seus golpes não me atingiram. Mais dois golpes e a luta estava encerrada. Ele foi embora cambaleando, e a chegada de um dos professores me fez sentir que agora nenhuma arte marcial no mundo me protegeria. Mas graças aos céus, o público presente argumentou:

– Foi o gordinho que começou.

No dia seguinte, a mãe do colega procurou minha mãe, e o diretor me chamou na secretaria. Desnecessário repetir aqui os discursos das duas autoridades que eu mais respeitava na época.

Por outro lado, o azedume do limão transformara-se numa limonada. Como num passe de mágica, sumiram os quinze apelidos, e eu passei a ser conhecido como o mais destemido, respeitado e valente da escola, cuja única alcunha era “Galo Fino”. Ninguém mais me incomodava.

Quando presenciei o colega Alfredo, deficiente físico – pois tinha uma perna menor que a outra –, sendo alvo de risadas de um grupo de meninos, não tive dúvidas. Encarei os três e, com voz firme, prometi uma tunda para cada um se presenciasse tal cena novamente. Nossa! Que maravilha! Botei os três para correr e ainda consegui uma amizade legal com o Alfredo. Consequentemente, minha fama foi aumentando.

Dali por diante, eu era o protetor oficial do Alfredo e, como tal, fui chamado durante a hora do recreio para socorrê-lo, pois estava sendo provocado por um aluno. Quando cheguei ao evento, vi que era o “Coelhão”, um aluno da série seguinte que tinha os dois incisivos centrais proeminentes e era três vezes maior e mais largo do que eu. Ah, não tive dúvidas... Encarei o vivente e fui estudando seus pontos fracos. Logo se formou a aglomeração, agora composta de um público em massa, entusiasmado por um enfrentamento. Encarei o Coelhão, fiz cara feia e, para a minha surpresa, ele começou a rir e falou bem alto:

– Ah, esse é o Galo Fino então? Pra mim, tu não tem força nem pra cagar...

Pronto, era só o que me faltava. A galera caiu na risada. O Coelhão ria tanto, que chegou a sentar, e o Alfredo ao seu lado (inocentemente, ria também, para a minha surpresa). Mas que droga! Eu estava preparado para a luta, mas os risos foram tantos, que não tive outra opção senão rir também.

No ano seguinte, o Coelhão “rodou” e ficamos colegas de turma e amigos até hoje, inclusive o “baixinho” incomodativo. Aqui, justifico que a violência é o pior caminho escolhido por um ser humano. Tudo poderia ser resolvido com conversas e risos.

Atualmente, o Coelhão, com o uso de aparelho ortodôntico, já não carrega mais esse apelido, o “gordinho” fez regime e só que eu que não tive conserto. Continuo fino. Enveredei para a atividade bancária e, quando era subchefe de seção, apareceu o Coelhão no banco e pediu para falar com o “Sub”. Os colegas no balcão perguntaram:

– O Subchefe?

E eis que ele respondeu:

– Não, o Subnutrido. Aquele Galo Fino ali, ó.

E cada vez que episódios semelhantes acontecem, me associo à galera da risada, e os tempos do Galo Fino ficam apenas na lembrança.

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Inspiração

Aconteceu comigo...O texto fala por sí só.

Sobre a obra

É uma descrição de um período de minha vida de criança e adolescência.

Sobre o autor

A arte se manifesta em todos os lugares e por que não dizer em nossas lembranças.
Gosto de relatos e histórias. Escrever é fazer a alma falar.

Autor(a): ILBERTO LUIS TRENTIN (Ilberto Trentin)

APCEF/RS