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A trégua
A trégua
Quando a morte envolve rixas entre lenços brancos e colorados, o povoado se divide e silencia. Apenas os correligionários tomam partido e os coronéis cospem fogo pelas ventas e batem cascos nos casarões planejando a desforra.
Mas no domingo de ramos ocorreram duas mortes. Dois figurões haviam sido assassinados. O maragato Teodorico Pedroso amanhecera morto em sua residência na avenida Sete de Setembro. E o chimango Patrício Torquato em seu sobrado na avenida general Osorio. Ambos estavam com uma faca prateada cravada no peito.
Edgar Alan, delegado, estava totalmente confuso. Não tinha a menor ideia de como começar as investigações. Dois desafetos mortos na mesma manhã e de maneira semelhante.
Mariana Pedroso jurou vingança diante do cadáver do esposo. A incumbência ficaria ao encargo do único filho Mariano. Vingar, a qualquer custo, a morte de Teo.
Janaína Torquato só pensou em velar o marido e solicitou que os filhos Carolina e Celestino encaminhasse junto ao padre Vicente o velório na Matriz.
O problema é que Mariano Pedroso já havia requerido ao pároco a mesma intenção: velório e missa na Matriz.
Numa reunião de urgência convocada pelo padre, os filhos enlutados e o delegado Edgar Alan e após acaloradas discussões de parte a parte, ficou decidido que haveria uma trégua e a missa seria feita em homenagem aos influentes líderes locais. Com os dois defuntos presentes.
Mariana Pedroso ainda relutou, dizendo que não se misturava com a corja de chimangos do Torquato. Ainda mais na despedida de seu amado Teodorico Pedroso. Mas, muito a contragosto, acabou aceitando. O velório dos coronéis – maragato Pedroso e do chimango Torquato – seria na igreja Matriz São Sebastião. Os maragatos ficariam à esquerda da nave central e os chimangos à direita. De quem entra. Bem salientado pelo padre.
Dois pau-mandados de cada uma das famílias, ostentando garbosos lenços e facas nas guaiacas, postaram-se em frente da igreja, orientando seus correligionários a ocuparem os acentos. Muitos deles armados com facas – de prata – e revólveres.
Havia uma tensão no ar e poucos prestaram atenção na homilia. Cada grupo estava atento ao menor movimento dos oponentes. Naquele culto apenas o choro das esposas, filha e amigas demonstrava sentimento de pesar.
A turma que não queria se expor politicamente acabou se amontoando no fundo da catedral. Edgar Alan não quis assistir à missa e ficou sentado num banco na praça.
Edgar já estava imaginando como fazer o enterro, já que os jazigos das famílias era um ao lado do outro. Os desafetos seriam vizinhos por toda a eternidade. Mas, em seguida, o delegado teria outros motivos para preocupação. Um carro, com placas do Uruguai, estaciona em frente à igreja. Uma elegante senhora toda de preto, com o rosto encoberto, desembarca e adentra no recinto. Ao perceber que havia maragatos de um lado e chimangos do outro, Rosita Calderón ajoelha-se no corredor da Matriz e fica ali, assistindo à missa.
Mariana Pedroso e Janaina Torquato entreolharam-se discretamente em tom de culpabilidade e em seguida faiscaram os olhos sobre e mulher que acabara de entrar na igreja. O ambiente ficou tenso e um zunzum de sussurros desconcertou o pároco. Mas o padre Vicente se recompôs e seguiu com a liturgia.
– O que essa sirigaita faz aqui? – perguntou a viúva de Pedroso ao filho.
No outro lado, junto ao caixão, Janaina Torquato comentou para a filha ouvir.
– Esta lambisgoia é muito atrevida!
Toda a comunidade sabia que os dois rivais políticos eram frequentadores assíduos da “La casa de Rosita” em Melo no Uruguai. Ambos desfrutavam das vultuosas formas de Rosita sob o lençol da cama de Rosita. A castelhana tinha a delicadeza e sensibilidade de colocar os lençóis brancos quando recebia Patrício Torquato e lençóis vermelhos quando era noite de Teodorico Pedroso. Dias pares para um e dias ímpares para o outro. Assim, na “La casa de Rosita” os dois desafetos coronéis viviam na mais santa paz. Em “La casa de Rosita” a paz poderia ser santa.
Naqueles breves momentos de oração, ela ficou de mãos postas e olhar baixo. Em silêncio, fez mais algumas preces ignorando o burburinho que provocara. Em nenhum momento enfrentou os olhares das viúvas. Mas as duas viúvas fulminavam Rosita com olhos de águia.
Levantou-se e saiu. Rosita desfilou no corredor da nave central da igreja. E, rapidamente, dirigiu-se ao carro que a esperava junto a praça. Foi neste instante que ouviu uma voz que conhecia muito bem.
– Rosita Calderón! Precisamos conversar.
– Boa noite doutor Edgar Alan, quando quiser. Estou sempre disponível. Aliás, o senhor não tem aparecido lá no meu estabelecimento – falou arranhando um portunhol.
– Rosita, por enquanto, uma pergunta apenas: por que veio na missa? Está querendo provocar outras matanças?
– Meu caro delegado. Eles eram meus clientes e muito mais do que clientes, eram meus amigos. Nada mais justo que viesse dar um último adeus – bateu no ombro do motorista indicando sinal de partida. – Hasta luego, delegado.
Rosita Calderón transitava muito bem no meio político da região. Mantinhas laços de amizade com os mandantes no Brasil e no lado uruguaio. Afinal, muitos conchavos foram selados em “La casa de Rosita” em Melo. Dizem que influenciou eleições municipais na pampa gaúcha. Dom Pedrito, Jaguarão e duas vezes em Bagé. Numa delas inclusive indicou a chapa completa com prefeito e vice. E um doble chapa na vice na eleição passada.
Edgar sabia muito bem das pretensões políticas de Rosita e suas intenções de abrir uma casa na pampa gaúcha. Certamente, ela precisaria dar algumas explicações. A morte de Torquato e Pedroso passavam pelas artimanhas da castelhana de Melo.
Para o sepultamento não houve problemas. As viúvas entraram em acordo e seriam feitos com duas horas de diferença para evitar tumulto, já que os dois desafetos seriam vizinhos para a toda eternidade. O féretro de Teodorico Pedroso sairia às 9 horas da igreja e o de Patrício Torquato às 11 horas, os dois sepultamentos pela manhã do dia seguinte.
Ninguém velaria seus mortos durante a noite. A igreja estaria fechada e apenas dois sentinelas ficariam postados em vigilância. Certamente, dois maragatos e dois chimangos.
Cedo, na manhã de segunda-feira, já se formava uma multidão na praça para acompanhar o sepultamento dos dois líderes locais, assassinados no dia anterior. Ainda havia as elucubrações sobre quem seria o assassino, ou assassinos.
Era o que mais intrigava o delegado Edgar Alan. Cada um deles fora assassinado na manhã de domingo com uma facada no coração. Ambas as facas também tinham semelhanças: facas com cabos e bainhas de prata com detalhes em ouro. Praticamente no mesmo horário e o mesmo modus operandi. O delegado não tinha a menor ideia de como iniciar as investigações.
Num primeiro momento iria respeitar o luto dos familiares, mas passada a primeira semana teria que ouvir os depoimentos das viúvas e dos filhos. Certamente, dos empregados que mais frequentavam as residências.
A investigação não evoluía por conta das coincidências. Teria que ser, necessariamente, dois assassinos. Para ser um único matador deveria haver deslocamento e seria provável um rastro de pistas. Alguém veria o homicida nas ruas e nas imediações das casas. O delegado estava convicto: eram dois assassinos. Mas como atuaram em sincronia?
Por que dois desafetos foram mortos no mesmo dia e, praticamente, no mesmo horário?
O histórico de desavenças entre as famílias Pedroso e Torquato era de mortes de lado a lado. As últimas e mais recentes mortes foram um sobrinho do Torquato e a irmã de Mariana Pedroso. As famílias, definitivamente, se odiavam e a solução para desavenças era sempre a ordem de assassinato.
E nessas elucubrações o delegado passava os dias envolvido com a investigação e meditando sobre os possíveis motivos. E onde entrava a Rosita Calderón nessa história toda?
Numa noite de bebedeiras, num boteco da rua Sete de Setembro, um chimango à meia-guampa, falou em alto em bom som para todos ouvirem que sabia quem havia matado seu patrão Patrício Torquato. O estabelecimento silenciou e chimangos e maragatos em convivência pacífica na hora do trago, ficaram de prontidão e colocaram suas mãos nos revólveres e facas. Tensão no ambiente. O borracho continuava gritando que sabia quem eram os mandantes da morte do patrão. A turma do “deixa disso” entrou em ação e retirou o impertinente cidadão arrastado para fora do estabelecimento. E não se ouviu mais o fulano pelas ruas da cidade. Tomou um chá de sumiço era o comentário dos frequentadores do boteco. E não se falou mais nisso.
Numa cidadezinha perdida no pampa em que todos sabem da vida de todos, nada acontece por acaso. O delegado Edgar Alan caminhava, despreocupadamente, pela avenida general Osório quando observa a dona Janaina Torquato entrando na confeitaria.
O instinto de investigador do delegado fez com ele dedicasse um tempinho para observar a viúva de uns dos mandatários da cidade. Entrou numa loja de ferragens e ficou atento à confeitaria do outro lado da avenida.
Passados vinte minutos: a surpresa. Lentamente adentra à confeitaria a senhora Marina Pedroso. Justamente a viúva do outro mandatário da cidade.
O delegado não teve dúvidas, iria ao encontro das madames. Afinal de contas, como reagiriam as duas matriarcas de famílias que se odeiam num encontro casual? Tomariam um cappuccino com mil-folhas?
Edgar Alan entrou no recinto e viu o que parecia impossível há poucos meses. Algo inusitado na comunidade. Janaina e Mariana sentadas a uma mesinha de canto e saboreando cada uma um suco de laranja com pasteis de Belém. Evidentemente, o delegado foi cumprimentar as duas influentes conterrâneas.
– Fico muito feliz em perceber que as duas mulheres mais influentes da cidade estão conversando como... – o delegado foi buscar uma palavra para completar a frase.
– Como pessoas civilizadas, delegado?
– Eu diria educadas, dona Mariana.
Edgar Alan aceitou o convite para sentar junto a mesa e tomar um suco. Mas preferiu um cafezinho preto. Então, ficou sabendo que as duas senhoras estavam ali para negociar um armistício. Uma trégua. Na realidade seria o fim das matanças entre os Pedroso e os Torquato. A partir de daquele dia a paz reinaria entre os concidadãos. As duas famílias estariam juntas para o progresso da cidade. Inclusive, nas próximas eleições nenhuma delas indicaria candidatos. As brigas entre chimangos e maragatos ficariam no passado.
– Como estão as investigações das mortes de nossos maridos, delegado? – perguntou Janaina.
O delegado não respondeu, mas astuto como era, fez uma observação que para alguns passaria desapercebida.
– Que coincidências, minhas caras senhoras. Os relógios de vocês são praticamente iguais...
– Oh! Seu delegado. Nossos relógios são Omega Constellation são os mais precisos relógios do mundo. Veja aqui doutor. Até o ponteiro dos segundos...
Edgar Alan pediu licença e se retirou da confeitaria. Subiu lentamente a rua General Osorio. Sorriu com o canto da boca.
– Crime solucionado. Duas velhotas safadinhas... hoje mereço uma noitada na “La casa de Rosita”.
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Inspiração
Desavenças entre famílias numa cidade do interior gaúcho.
Sobre a obra
Dois coronéis são assassinados na mesma manhã e da mesma forma.
A partir dessa tragédia para descobrir quem seriam os assassinos já que os coronéis eram inimigos. A quem interessava a morte dos dois?
Sobre o autor
Participante de vários festivais de músicas e poesias. Dentre eles o 16º Bivaque da Poesia Gaúcha com o Poema “Herdeiros”; Talentos Fenae 2020 com a música “O violão entre a cruz e a espada” e da 27ª Tertúlia Nativista de Santa Maria com a música “Retalhos”.
Autor de vários livros dentre eles "O código Locatelli" e "Contos de Prata".
Autor(a): ATHOS RONALDO MIRALHA DA CUNHA (Athos Ronaldo Miralha da Cunha)
APCEF/RS
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