ZYL-9 RÁDIO CACHOEIRO AM 1210 KILOHERTZ

ZYL-9 RÁDIO CACHOEIRO AM 1210 KILOHERTZ

Em 1976, com 11 anos de idade, tive hepatite do tipo A, a mais branda. Minha mãe nao entendia muito da doença, mas o diagnóstico médico foi o suficiente para que se preocupasse e tomasse “todos” os cuidados. Naquele tempo, porém, o tratamento se resumia em “banho de assento" no Chá de Picão (uma erva medicinal) e a alimentação consistia em copos e mais copos de geleia de mocotó IMBASA, sabor tutti-frutti, e muitos, mas... muitos suspiros de clara de ovos. Comida com sal, nem pensar. Minha aflição era o repouso que se fazia necessário. Dias e dias deitado, o máximo inerte possível.
Para me distrair coloca ram no meu quarto uma TV pequena, em preto e branco e meu pai percebendo, ainda, a minha angústia trouxe-me um radiozinho a pilha, Dunga, vermelho, da marca Motoradio que foi minha companhia por longos dias. Aliás, para mim, muito mais longos do que realmente foram.
No rádio, sintonizava a ZYL-9 Radio Cachoeiro AM 1210 KHz, da “Capital Secreta do Mundo”, apelido dado por Rubem Braga à cidade de Cachoeiro de Itapemirim, por lá, passaram cachoeirenses importantes como Roberto Carlos, Carlos Imperial, Darlene Glória, Jece Valadão, Sergio Sampaio e outros.
Havia um programa muito divertido que prendia a minha atenção, o “Nelson Pereira Show”. Tocava as melhores músicas dos anos 60 e também os hits de sucesso da época. O apresentador começava o programa com o bordão: "Alô, Alô, Bistecas e Marmanjos!” E, a partir daí, contava histórias, lia cartas que os fãs mandavam, algumas de elogio e outras de reclamações bairristas das mais diversas, mandava abraços aos ouvintes, além das indispensáveis propagandas dos patrocinadores. Naquela situação, o “Nelson” me fazia companhia, me espantava o tédio e me alegrava.
Sobrevivi à hepatite e durante muitos anos, na minha juventude, entristecia-me o fato de, em razão da doença, não poder ser doador de sangue. Descobri anos mais tarde que a hepatite A não impede a doação e, então tardiamente, realizei essa minha vontade sendo hoje um “doador de carteirinha”.
Passado alguns anos me formei em Direito pela Faculdade de Direito de Cachoeiro de ltapemirim - FDCI, e, então me vi no paradoxo dos formandos. Isto porque, infelizmente, ou não, logo fui demitido do Banco Real, meu primeiro emprego, por conta das implicações do Plano Sarney, mudando meu status de "promessa de futuro do país” para o de "problema social”. Só via a solução nos concursos públicos, influenciado talvez pelas minhas referências de ideário de vida, todas de funcionários públicos, bancários em sua maioria, haja vista, meu Tio Paulo do Banco do Brasil e o pai de um amigo, Seu Gilton, que veio a ser meu tio por empréstimo, porém mais por consideração e estima, depois que me casei com a Claudia, sua sobrinha.
Inscrevi-me em alguns concursos e me dediquei aos estudos, nas apostilas que eram vendidas em frente aos correios da cidade. Prestei concurso na Prefeitura Municipal para a DATACI - Empresa de Processamento de Dados do município, para exercer a função de “Controller”, um estrangeirismo sofiscado para pretensamente dar importância maior a um Conferente de Dados Digitados.
Logo, fiz também minha inscrição para os Concursos da Caixa Econômica Federal e do BANESTES. Entre as inscrições e as provas, propriamente ditas, decorreram meses e, nesse ínterim, fui convocado para a DATACI e ali trabalhando continuava meus estudos para as provas dos concursos que ainda viriam.
O da CAIXA veio primeiro, em duas etapas, a prova escrita e a prova de datilografia. Fui aprovado na primeira etapa e aguardava a próxima com ansiedade. A prova escrita do BANESTES, conflitava com a prova de datilografia da CAIXA. Optei por continuar com a CAIXA, fiz a prova de datilografia e aguardei o resultado, cada dia mais ansioso,. Finalmente, com o coração disparado, vi meu nome na lista de aprovados, nas folhas impressas afixadas no vidro da porta de entrada da Agência Cachoeiro. Foi uma das melhores sensações de vitória que eu já havia experimentado, só perdendo para o momento em que contei para os meus pais, porque aí a conquista teve um duplo e especial significado para mim e para eles.
Fiquei no aguardo para ser convocado pela CAIXA, mas a espera foi longa. Entretanto, enquanto aguardava, uma notícia nos jornais mudaria minha rotina e ali iniciou-se uma série de acontecimentos com situações tão singulares e inusitadas que mereceram ser por mim consideradas fora do comum e que, a princípio, até poder-se-ia classificá-las como sorte. Optei por enumerá-las simplesmente como situações e por motivos óbvios, na certeza de que nada acontece por acaso.
De primeira, os jornais noticiaram que os gabaritos da prova do BANESTES haviam vazado e o banco resolvera cancelar a prova e remarcar uma outra prova em nova data, com mais rigor na fiscalização. Como já estava inscrito, pude fazer esta prova. - SITUAÇÃO 1.
A prova escrita foi numa escola em Vitória, num dia chuvoso, numa sala em que a circulação de ar estava restrita a umas aberturas com cobogós. Por conta da chuva, faltou energia e os ventiladores de teto nao funcionavam, a luz era insuficiente e a proibição legal da prática dos fumantes em locais fechados, ainda não existia. Eu precisava acertar 60 das 120 questões que compunham os cadernos de português e matemática. Minha alergia à fumaça de cigarros e poeira, associada ao calor e à falta de luminosidade apressaram a entrega da prova e a minha saída, quase obrigatória, daquele local insalubre.
Quando saiu o gabarito eu havia acertado 50 das 120 questões, portanto, abaixo da exigência do acerto de 60 questões. Mas, logo a seguir o BANESTES solta uma nota em que dizia que o número de participantes aprovados não era suficiente para cobrir as vagas do Banco e, por isso, baixaram a exigência para 50 acertos. Eu havia passado. - SITUAÇÃO 2.
Faltava a prova de datilografia, que seria realizada no Campus da UFES. Nessa época, eu e Claudia namorávamos e haviámos combinado tentar mudar meu horário de prova, o que seria viável, tendo em vista não haver máquinas de datilografia em número suficiente para todos. A ideia era adiar minha prova para mais tarde porque assim Claudia, que fazia Graduação em Educação Física na UFES e tinha um compromisso marcado lá, poderia viajar comigo de volta para Cachoeiro. Sem que se saiba o porquê, o compromisso dela fora cancelado, o que me possibilitava fazer a prova mais cedo, no horário originalmente marcado, para viajarmos juntos. - SITUAÇÃO 3.
Apresentei-me ao fiscal, expliquei o ocorrido, tudo se resolveu e entrei para fazer a prova. Antes porém, outros dois fiscais entraram na sala e perguntaram aos presentes se poderiam atestar a ausência de dois candidatos. Nunca me coloquei à disposição para essas situações, talvez por timidez, mas naquele momento, o fiscal estava bem próximo de mim e me ofereci. Ele me entregou um relatório, apontou uma linha e pediu que eu assinasse atestando as ausências dos candidatos, só que um dos nomes dos ausentes era o meu. A surpresa foi enorme, mas identifiquei-me mostrando a minha identidade e pude fazer a prova. - SITUAÇÃO 4.
Dias depois saiu o resultado. Eram exigidos 180 toques por minuto e um percentual de erros baixo, para passar para a próxima fase que era o teste psicotécnico. Minha avaliação foi pouco abaixo dos 180 toques e ali, imaginei: pronto, acabou! Só que, agora, o BANESTES considerando que a exigência de 180 toques não conseguia aprovar o número necessário de candidatos, baixou a exigência... E olha eu aí, de novo, na disputa. - SITUAÇÃO 5.
No dia do teste psicotécnico, me informei e entrei no ônibus que me indicaram que me deixaria no local da prova. Eu havia feito o trajeto umas poucas vezes e confesso que andar em Vitória me causava um certo desconforto. No caminho, um acidente fechara a via e o ônibus teve que fazer um desvio que aumentou o tempo para a chegada ao colégio onde seria aplicada a prova. Perguntei ao trocador se mais alguém estava a caminho da prova e ele me disse que sim, muitos outros. Colei neles e torci para que chegássemos a tempo. Chegamos atrasados e antes mesmo de chegar aos portões já sabíamos que não entraríamos. Os concursos eram rígidos neste quesito. No entanto, cientes do acidente e do desvio, a direção da prova resolveu dar uma tolerância de 15 minutos e conseguimos entrar. - SITUAÇÃO 6.
No dia agendado para o resultado, no horário de almoço da DATACI, fui à TELEST, e liguei para o número de telefone que havia anotado. Confiei na memória e nao levei o comprovante de inscric;ao. Eram tantas as possíveis coincidências e as situações tao improváveis que contando, dificilmente alguém acreditaria. Mas lá estava eu, aguardando o resultado. Para a minha cidade, eram 20 vagas para as duas agências, Cachoeiro e Bernardo Horta, essa última, muito próxima da minha casa. Quando recebi a resposta negativa senti o pesar até na voz da funcionária.
Voltei para o trabalho, perplexo e entristecido, peguei a inscricão que estava na minha mochila e, olhava para ela, sem entender aquela situação.
De repente, notei que eu havia invertido o número do meio da sequência da inscrição. A memória me pregou uma peça, mas havia uma chance. Peguei o número do telefone e levei o comprovante de inscricão de novo à TELEST. Liguei novamente, falei com a mesma pessoa, me desculpei e passei o número correto. Enquanto ela procurava na lista, mentalmente analisava a série de improbabilidades naquele processo e, por certo, eu teria que passar, nem que fosse para a última vaga. A funcionária voltou a falar comigo e disse que sim, que eu havia passado, na última vaga e por isso, assumiria na Agência Bernardo Horta. Trabalharia no BANESTES e na agência que eu queria. Tudo muito certinho, perfeito! - SITUAÇÃO 7.
Tinha que ter alguma razão para eu ter passado por tantas situações loucas até as coisas darem certo. Mas, qual seria o propósito? Mas, enfim, tinha feito os exames admissionais, o contrato estava assinado, a CTPS com registro novo, e na data agendada me arrumei e desci para a agência, nao sem antes ouvir uma série de conselhos e recomendações de Dona Anna Maria, minha mãe.
Recebeu-me na agência uma jovem senhora por nome Heloisa. Muito simpática, me perguntou se eu tinha alguma experiência de trabalho, ao que respondi, havia trabalhado, aos 19 anos, como Caixa Executivo Efetivo no Banco Real e que também, trabalhara no Setor de Ordens de Pagamento. Informou-me então, que me alocaria no mesmo setor, onde certamente eu me sentiria mais a vontade.
Levou-me até lá e me apresentou ao supervisor. Eu estava um tanto nervoso e curioso e nem prestei muita atenção ao nome dele, na verdade, um apelido pelo qual a Heloisa o havia chamado. O supervisor era falante, simpático, ostentava um vasto bigode preto e tinha uma voz potente, falava alto e a todo momento conversava com os colegas, que pareciam ser íntimos. O ambiente de trabalho, também parecia ser bastante agradável.
O telex não parava e muitas ordens de pagamentos chegavam de outras agências do Estado e precisavam ser datilografadas em modelos apropriados, anexadas à mensagem do telex que originara a OP e na sequência, a assinatura do supervisor sob o carimbo. Naquele primeiro dia fiz o meu trabalho, com o máximo zelo, para causar uma boa impressão.
Ao assinar as ordens de pagamentos, tentei ler o nome do supervisor, inelegível aos meus olhos, mas ao carimbá-las, lá estava o nome impresso, “Nelson Pereira”. Por um instante, me reportei aos meus 11 anos de idade, ao meu radinho Dunga vermelho e aos meus muitos dias de repouso.
Dirigi-me a ele perguntando se ele tinha alguma relação com a Rádio Cachoeiro e em resposta ele soltou um... "Alô, Alô, Bistecas e Marmanjos!" A mesma voz, a mesma entonação... Meu coração disparou. Ele me contava coisas do programa que eu não conhecia e outras curiosidades que eu ávido absorvia, “viajando” num sentimento bom. De repente, ele me perguntou se eu ouvia o programa e eu lhe falei sobre a doença, o repouso, o rádio... e emocionado e com gratidão falei da companhia que ele me fizera nas tantas manhãs daqueles intermináveis dias.
Seu rosto mostrou uma seriedade não muito condizente com o seu semblente alegre, seus olhos brilharam e pude notar uma lágrima ainda presa carregada de lembranças, e um misto de emoção, orgulho e saudade.
Contei-lhe, por oportuno, minha saga até chegar ali e encontrá-lo, porque não poderia deixar de fazê-lo. De alguma forma, tudo na vida tern uma razão de ser... Nada acontece por acaso e t a lvez tudo tenha concorrido para que eu tivesse a oportunidade de agradecer pessoalmente, a quem, mesmo sem me conhecer, fora meu companheiro em momentos de angústia, motivo de risadas quando a vontade era de chorar, e que virou um amigo de todos os dias com hora marcada para me visitar.
Fiquei poucos meses no BANESTES e logo fui chamado para assumir minha vaga na Agência da CAIXA de Muniz Freire.
Despedi-me dos colegas, agradeci pela acolhida e pelos meses de convivência. Ao Nelson, em especial, meu abraço foi mais longo e mais apertado, nós sabíamos que era de carinho e gratidão.
Agora devo confessar porque enumerei tudo que ocorreu apenas como situações, embora pudesse tê-las considerado como sorte. É que creio que Deus está em tudo e lembrei-me de uma canção que diz: “Nunca foi sorte, sempre foi Deus”. Acreditando que quaisquer situações podem se transformar em bençãos em nossa vida, que algumas delas nem agradecemos e de outras, às vezes, nem nos apercebemos.
E adaptando a fala do escritor francês Gautier (1845), ratifico que: “Coincidência é a maneira que Deus encontrou para permanecer no anonimato”, fazendo acontecer.

Então, permita-se, deixe Ele agir!

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Inspiração

É o relato de uma história real e que dadas as muitas situações inusitadas merecia ser contada.

Sobre a obra

A técnica é o conto.

Sobre o autor

Minha primeira participação em um dos projetos da FENAE foi em 2007, no Crônicas FENAE, de abrangência nacional, onde com a obra A Teoria do Hipopótamo, conquistei um 2º lugar. Voltei a participa em 2019, 20 e 21, e nessas edições, em todas elas, me classifiquei em 2º lugar. Parece um carma que mereceria um conto sobre.

Autor(a): ALEXANDRE GONCALVES PEREIRA (Alexandre Gope)

APCEF/ES

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